terça-feira, 14 de dezembro de 2010

"Última flor do Lácio, inculta e bela/ És, a um tempo esplendor e sepultura:/ (…)Amo-te assim, desconhecida e obscura"



Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. 
Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente, Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, NÃO quem escreve mal português, NÃO quem não sabe sintaxe, NÃO quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografaria sem ípsilon, como escarro direto que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografaria também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.



* Texto publicado originariamente em "Descobrimento", revista de Cultura n.º 3, 1931, pp. 409-410, transcrito do "Livro do Desassossego", por Bernardo Soares (heterónimo de Fernando Pessoa), numa recolha de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha; ed. de Jacinto do Prado

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