segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Novamente Adélia

Ensinamento


Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

Adélia Prado - AMOR FEINHO

"Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado, é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero amor feinho."

Shopsi - Adélia Prado

Hoje completa um ano que tou fazendo terapia
- o que você conta ao doutor?
Que tenho medo panifóbico de ver minha mãe morrer.
- Só isso?
Só. Coisa à toa feito não comer três dias porque vi formiga de asas, isso eu não conto mesmo. Só converso coisa séria.
- E ele?
É muito paciencioso. Diz que meu caso é difícil mas tem cura com o tempo. Qualquer dia me convida pra uma sessão no sítio.
- Você topa?
Tou pensando. Vai que aparece lá uma formiga de asas e apronta aquele escândalo. Me diz com que cara eu volto no consultório do homem?
- Mas ele tá lá pra isso.
Isso o quê? Tchauzinho, Catarina.
- Tchau.

O Ponto Cego - Lya Luft





História de Mãe e de Menino


'Mãe! Chamaremos agoniados."
Reunião de família, 1982

Eu que invento e desinvento, eu que manejo os cordéis, eu decidi parar de crescer. Foi quando minha Mãe não procurou logo por mim naquele nosso jogo. Dessa vez ela não entrou na brincadeira: não se interessava mais.

Isso foi antes de recebermos a visita que faria saltar dos espaços brancos tudo o que lá se ocultava.

Minha Mãe foi-se cansando de mim, da nossa cumplicidade. Ou da vida que levava. Sabia que havia rumos a decidir e restava-lhe menos tempo para minhas constantes necessidades, pois eu a exigia muito - e ela se exigia o tempo todo.

Talvez ninguém seja culpado: meus cálculos podem ter dado errado, minhas manobras falharam, o devorado era o que devia ficar inteiro, e o sobrevivente foi aquele que deveria ter sido engolido.

Notando o desinteresse dela, disfarçado mas real, e do qual talvez nem ela se desse conta, pensei que se ficasse para sempre pequeno eu teria mais chances: o que resta a uma Mãe senão cuidar do seu Menino?

Além do mais, sendo adulto eu perderia a minha perspectiva, as possibilidades de inventar se afunilariam e se fechariam as portas daqueles corredores.

Eu não queria ser como meu Pai que pensa que tudo controla mas deixa escapar o essencial. Então tomei a minha decisão.

Meu corpo obedeceu quando eu o reprogramei; mas não como fora planejado. Parou, mas não de todo; e não se sustou direito. Em algum momento errei a fala, fugi do roteiro, botei fora o papel pensando que era indispensável. Estranhas mudanças começaram a acontecer em mim - essas que nem eu entendo mas sofro.

Cada dia sinto que fiquei alguns milímetros diferente. Um pouco maior? Menor ainda? A pele muda de textura, tudo me dói. Se, ao contrário do que projetei, eu continuar crescendo mas minha pele não esticar? Se ela rachar e se fender... se eu explodir?

O que vai ser de mim? Eu me pergunto isso todos os dias, uma porção de vezes. O que vai espirrar nas paredes, o que vai-se derramar no chão: a merda ou o sonho?

O tempo que rói e corrói precisa ser reinstaurado, quem conta histórias pode sobrepor muitas camadas de imaginário e real pois sabe que os limites são tênues, e poderosa a liberdade com todos os seus perigos.

(É isso que eu faço. Eu manejo as minhas criaturas, invento e desinvento, e faço acontecer.)

• • •

Esta é a história de um Menino e da Mãe do Menino: uma história de muita sombra. História de desvãos, do embaixo do debaixo, do secreto. Narração de olhares, de um olhar. História de invocações.

Na trama da minha vida, sei que a Mãe preferia o Menino, mas o Pai queria era a irmã do Menino, bem mais velha. Era ela o futuro, era o homem, herdeira da força, dos desejos e projetos, a futura diretora das empresas. Ela ia com o Pai, visitava com ele o escritório e as fábricas onde havia um capacete adaptado à sua delicada cabeça. A menina dos olhos do Pai, diziam.

Eu, Menino, nasci bem depois, enfezado e prematuro, de cabeça grande no corpo magro, muito sem graça.

O Pai parece perplexo:

O que é que a gente faz com esse Menino? - pergunta às vezes à minha Mãe.

Ou:

- Nunca sei direito o que fazer com ele. Tão diferente, tão esquisito.

- É o jeito dele, deixa a criança em paz, daqui a pouco ele se recupera e fica um homão feito você.

Sei que no silêncio ela pensava: Ou ficará sempre do jeito dele mesmo, alguém fora do padrão, alguém especial - o Menino de sua Mãe.

E me dizia que eu era especial para ela, o filho sonhado, desejado:

- Você foi o filho da minha maturidade, que eu tanto quis. Você foi a minha alegria renovada.

• • •

Algumas das coisas que vou contar aqui eu vi e vivi; de muitas suspeitei, apanhei soltas no ar, meu coração as escutava soprando nas frestas. Outras, ainda, as pessoas revelaram sem saber.

Sempre há quem se exponha àquele que finge não escutar nada atrás das portas e não enxergar muita coisa lá da sua perspectiva. Personagens arrastam-se de longe: nunca acabaram de ser narradas por isso não conseguem morrer, e querem que eu as convoque.

Não cessam; murmuram nas dobras da cortina; querem voltar, querem viver. Sabem que posso desatar os nós que as prendem e as soltar na sombra - como balões iluminados.

Eu simplesmente fui reunindo mentiras e testemunhos: pois o que passou e o que está por vir e o que jamais aconteceu, paira no ar como a voz do mar continua depois que o fundo de areia se transformou num perfumado capim, riachos e cavalos, e pessoas com seus destinos desde sempre escritos.

Mas a verdade que eu quero contar, essa que circula no meu sangue e transuda de minha pele, é a história de duas pessoas que foram engolidas pelo seu olhar: um olhar infinito e interminável, viajante certeiro.

Um olhar fatal.

E de um cavalo cor-de-mel cujas patas varavam a noite, e um dia levaram alguém para onde não tem o sim nem o nada.

No preto e no branco, esta é a narrativa de como tentei manipular o tempo e afinal ele armou para mim uma armadilha mais eficiente do que a minha malícia.

Se eu era o definido precário, minha Mãe era a força negada: trazia entalada na garganta a pedra de sua própria anulação. Meu Pai tinha direito ao espaço: o melhor lugar à mesa, a maior poltrona na sala, a força e a ordenação.

As pessoas o temiam; eu também. Minha Mãe, por alguma razão nebulosa, sempre se submetia. Era mais inteligente do que ele, mais perspicaz, mais agradável, muito mais estimada. Porém sempre se esforçava por falar menos que ele nas reuniões e visitas: procurava a indefinição. Quando os dois discutiam, minha Mãe cedia: olhava para o lado, amaciava a voz, procurava as palavras que não o irritassem. Mesmo podendo vencer ela queria perder. Perder era o seu conforto. Outras vezes, calava: olhava um ponto longe e ali se interrogava.

(Um dia ela iria transbordar das beiras de si mesma, e eu teria preferido não estar presente.)

Embora sendo uma rainha, minha Mãe se curvava. Medo de ficar sozinha com este filho desenquadrado, medo de tomar decisões quanto ao seu destino - muito mais difíceis do que as que tomava no trabalho? Que anistia minha Mãe precisava se dar para viver inteira?

Comentando suas vitórias nos negócios meu Pai só dizia:

- Eu decidi.

Eram de minha Mãe as empresas, herança de seu pai, e sendo filha única era realmente a dona. Mas o mando era do marido, eram dele a voz poderosa, o passo determinado, o aparente poder.

Algumas vezes quando traziam papéis para trabalhar em casa, ele brincava chamando-a de "Senhora diretora", ou "Minha linda patroa". E inclinava-se para ver alguma coisa no computador pequeno que ela abria sobre a mesa de jantar. Um casal feliz?

Um casal com segredo e descompasso. Um par sem alegria.

Não era muito bonita a minha Mãe, grande e tranqüila por fora. Tudo nela era aquela mirada cinzenta e distraída. Quando olhava um ponto qualquer sem nada ver, eu queria embarcar também - mas não havia espaço. Isso me dava muita angústia e amor.

Quem sabe ela se questionava: Minha dívida é tão grande assim? Quanto terei de pagar - quanto realmente desejo pagar?

Depois o seu olhar voltava para mim, me chamava, ria e brincava - e era o paraíso. Os olhos de minha Mãe eram o meu paraíso, e foram a sua perdição.

Para sempre sete anos - esse número é o mais bonito: são sete os patamares, sete os pecados e sete os mares, sete a conta do mentiroso, gatos dourados têm sete vidas, bela é a lua sobre o campo quando a morte começa a desdobrar as asas.

Meu Pai precisava controlar tudo e todos; sobretudo essa que era a sua mulher. "Minha mulher", dizia em voz firme, falando dela ou quando a apresentava. Dizia:

"Minha mulher não faz isso", "minha mulher não freqüenta esses lugares", "isso é coisa de minha mulher".

Mas a posse o mantinha preso. Sendo o forte, na propriedade estava a sua fraqueza.

Só depois que tudo aconteceu, e que esta história foi desenrolada até quase o final, compreendi que sua insegurança o fazia agir assim; por medo queria conformar as coisas todas segundo sua vontade.

(Meu Pai também carregava a sua dor.)

Quando estavam separados, telefonava a toda hora para minha Mãe como se quisesse verificar que a ordem de sua vida não fora infringida. Quando estavam juntos, não tirava dela o seu único olho azul, conferindo: era tudo ainda como sempre, ela não se desviara dele, da sua vontade e da sua determinação?

Se minha Mãe lia quieta num canto ou simplesmente ficava sentada sem fazer nada, observava-a calado e sombrio como se quisesse analisar cada um de seus pensamentos.

Ela se queixava para minha Avó, que nesse tempo ainda não estava muito doida:

- Não estou agüentando mais. Ele nega mas quer me controlar, se pudesse comandava meu pensamento. Até no trabalho me vigia com aquele seu olho. Não consigo mais respirar!

Minha Avó pousou na filha o olhar crítico:

- Você perdeu sua chance aquela vez. Aí ainda podia mudar a sua vida. Mas agora, com dois filhos, e já perto da meia-idade...

Olhou depressa para mim para ver se eu estava prestando atenção, mas eu fingia montar um brinquedo. Sabia que "aquela vez" era um assunto proibido, uma porta perigosa.

Minha Mãe suspirou:

- Não sei, não sei mais nada. - Ergueu os ombros e deixou cair, um gesto de desesperança. - Talvez você tenha razão: trocar o que tenho pelo duvidoso?

• • •

Eu vi, atrás das portas e do alto das escadas, eu vi: quando havia mais gente, sempre que minha Mãe ficava alegre e falava alto ou alguém a elogiava, ele a abraçava, beijava na boca. Outros casais ali não faziam isso; ele insistia. Minha Mãe se desviava sorrindo, tentava fazer parar, acho que encabulava. Vendo-se contrariado ele ainda a puxava para que sentasse em seu colo, e eu, atento atrás da porta quando todos pensavam que dormia no quarto, eu via, via no rosto dela a expressão de repulsa e de sufocamento.

Meu Pai a iria perder por prendê-la tanto. Do meu ponto de vista pude enxergar isso e muito mais. Pois há esse lugar em que não se vê o trivial nem o concreto, mas o atrás e o avesso.

(Sabendo que eu também a perderia, nessa hora senti pavor.)

• • •

Descansa em paz Letícia, filha amada, estava escrito numa pedra do cemitério onde fui outro dia com minha Mãe.

Eu sei que letícia significa alegria, foi minha irmã quem me disse, e disse:

- Ela era a filha querida do Papai, nasceu antes de você, antes de mim, mas morreu. Ficamos nós dois, eu e você, monstrinho. Melhor pra mim que ela morreu, agora eu sou a preferida! - acrescentou já se afastando, e sua risada cortou o ar como uma fina fria faca.

- Você não tem pena dela por ter morrido? - perguntei. Ela se deteve, impaciente:

- Eu nem lembro dela direito, era pequena demais. Morreu, acabou, o que é que tem?

E saiu, plena de sua vitória e de sua afirmação.

Ser a predileta do Pai era absoluto, um valor absoluto em nossa casa. Ser o predileto da Mãe não importava tanto: embora minha Mãe fosse a dona, era menos que meu Pai.

• • •

Ela estava muito calada durante o trajeto, e pareceu triste quando botou flores no vaso de pedra. Então ali estava enterrada a alegria dela e de meu Pai.

Perguntei:

- Você gostava muito dela?

Ela me fitou surpresa mas sorriu:

- Claro meu filho, era minha filha, como sua irmã, como você. Morreu tão menina, tão de repente.

Fora obra de um tumor na cabeça, um veloz devorador. Meu Pai não saía do lado dela no hospital, e quando ela morreu ele gritava tanto que se ouvia pelos corredores. As Tias me contaram tudo, com elas era fácil descobrir coisas: bastava destapar o fosso com alguma pergunta inocente, e despejavam relatos da vida dessa família na qual ocupavam um lugar tão reduzido. Mas era o lugar que tinham.

Como eu, sendo desimportantes podiam observar melhor. Minha Mãe, mesmo tendo perdido a filha de seu ventre, levara meses, anos, para ajudar o marido a se recuperar. Ele se agarrara desesperadamente à filha que sobrara.

Eu só ia nascer bem depois disso, estrangeiro e tardio: o lugar especial fora ocupado.

Quando penso no sofrimento dele com aquela morte quase tenho pena, e chego a prometer a mim mesmo nunca mais escrever "letícia" no espelho do corredor, nem murmurar entredentes "alegria, alegria" quando ele passa por mim.

Mas não sou bom cumpridor do que prometo.

• • •

Não há na casa toda um só retrato dessa menina morta. Dizem que meu Pai não suportaria a dor. Queimou, rasgou, destruiu todos os sinais dela em torno quando ela morreu. Nem um vestidinho sobrou, nem um sapato. Ele nunca mais pronunciou seu nome. A palavra alegria foi banida de nossa casa.

Mas minha Mãe guarda coisas da filha escondidas no fundo de gavetas: tristes amarelados objetos dessa que não a deixaram amar direito. Às vezes quando ninguém vê eu vou até lá pego entre esses restos uma fotografia, e fico olhando.

Quero conhecer essa menina, quero conversar com a alegria que meus pais perderam. Sozinho no escuro consigo chamar quem eu quero: mas essa aí não vem com facilidade.

A foto mostra uma criança sentada num banquinho, livro de figuras aberto no colo. Mas não olha o livro: olha para nós que a contemplaríamos no futuro, e ri. Olhos claros, no cabelo uma fita como uma borboleta assustada.

Parece um anjo no alto de uma escada, cabelo crespo igual ao meu. Mas o meu sempre mandam cortar curtinho: meu Pai não quer saber de filho com cara de menina, além do mais essa semelhança o assusta. Essa, eu sei, é uma das coisas perigosas da minha vida.

Como se sentirá quem a gerou e pariu, cuidou dela e amamentou, e criou e amou no espaço que sobrava, na estreita beira que meu Pai lhe permitia - e de repente a perdeu para a coisa Inominável?

Em que medida meu Pai, o dono da criança, teria acusado a mulher por essa perda? Com que impossibilidade de perdão ela mesma se culpava?

Sempre que vou para frente de um espelho, é a outra criança que me encara.

(É assim o tempo: devora tudo pelas beiradinhas, roendo, corroendo, recortando e consumindo. E nada nem ninguém lhe escapará, a não ser que faça dele seu bicho de estimação.)

• • •

Quando meus pais me olham com seus três olhos, dois cinzentos e um azul, quem sabe também vêem a sua letícia morta e por isso não sabem como me tratar? Sou bem parecido com ela, pedacinhos do rosto e os olhos continuam em mim. Isso muito incomoda meu Pai, que queria a outra, a enterrada, a primeira. Talvez enterneça minha Mãe e por isso ela goste de mim do jeito que sou, pouco e diferente. Nem ao menos sou bonito, sei que não sou porque a gente escuta os adultos falarem.

- Estranho, ele. Não tem a beleza da outra, embora seja muito parecido - alguém comentou.

- Mas é simpático, ele tem carisma e é muito inteligente! - disse minha Mãe, parecendo orgulhosa.

• • •

Ele sempre quis uma filha. Quando todo homem quer menino, ele queria filha mulher. E vendo a criança pela primeira vez fez a sua escolha. Não importava quantos bebês viessem depois, essa era dele. Talvez quisesse inventar para si uma criatura.

Decretou:

- Vai se chamar Letícia. Vai ser a alegria de minha vida.

Minha Mãe pensara em outros nomes, mas na hora de escolher nem foi consultada.

Quando algum tempo depois outra menina nasceu ele não lhe deu importância. Seu coração feroz estava ocupado. Porém quando a morte lhe roubou a preferida, recuperando-se ele se voltou para a que tinha sobrado.

Talvez por ódio, para vingar-se da morte, talvez por medo - ou por não saber o que fazer com o inútil amor em que agora se enredava como em panos soltos - mais uma vez meu Pai escolheu: É essa, essa aí, agora ela vai desempenhar esse papel.

E amou a substituta com um entranhado amor que excluía até mesmo minha Mãe. Nela tinha sua esperança, nela plantava seus sonhos, fechava-se com ela num círculo de predileção.

Nossa casa girava em torno de minha irmã: suas qualidades, sua força, seu futuro - que ele já estava traçando.

Minha Mãe pedia:

- Por amor de Deus, deixa essa menina em paz, ela ainda é muito nova para falar em futuro e em profissão. Não é hora de tomar decisões desse tipo.

Meu Pai desdenhava:

- Está quase entrando na Faculdade, o que você quer?

E os dois riam dela, entendiam-se como se fossem irmãos, o Pai e sua menina.

Eu nem entrava em jogo nenhum: eu era o sapo na beira do poço. Nisso residia a minha liberdade?

Minha Mãe então ficava calada. E voltava-se para mim, nascido quando o amor começava a endurecer dentro dela como um fruto petrificado que então se abriu - e ainda havia mel no fundo. Seu amor se derramou sobre mim, forte e grudento, e doce também. Era tudo o que eu tinha, eu que não possuía nada.

(Mas não fui uma escolha: fui o que sobrou depois do nada.)

Em família, sem dizer nem combinar a gente determina quem são os maus, quem são os bons. Prende neles os rótulos e todo mundo acredita: eles também.

Minha Mãe tinha de ser a boa. Aquele era o seu papel. Meu Pai era dos maus. Ele manejava o poder. Minha irmã era uma invenção dele, a personagem. Minha Avó era a doidinha. As Tias contavam menos do que os outros. E não havia mais ninguém.

Pois uma menininha morta muitos anos atrás representava o fracasso e a perda. Por isso meu Pai parecia havê-la esquecido. Diziam que nem uma vez nesses tantos anos foi ao cemitério.

Assim pensava enganar a morte.

Todo mundo recebe o seu papel ao nascer, e antes de nascer. Desempenhá-lo bem é uma das muitas artes da vida. É preciso compartimentar: aqui ser feliz, ali desgraçado; com essa pessoa ser eu, com a outra ser inventado; aqui vestir um traje, ali virá-lo do avesso. Compartimentar para perdurar.

(Eu não era nem bom nem mau: eu estava de fora.)

• • •

Eu sou o que deixaram sob o tapete, o que à noite se esgueira pelos corredores chorando. Sou o riso no andar de cima muito depois que uma criança morreu. Sou o anjo no alto da escada de onde alguém acaba de rolar. Sou todos os que chegam quando ninguém suspeita: saem de trás das portas, das entrelinhas, do desvão.

As pessoas não descobrem, apenas desconfiam. Viram a cabeça um pouco, lançam um olhar disfarçado, mexem-se na cadeira. Ou continuam dormindo, boca entreaberta e corpo encolhido sob os lençóis. Algumas, entrelaçadas pernas e braços. Eu gosto disso, de me infiltrar sem ser esperado, sem ser visto.

Eu sempre estive lá: sei muito a respeito de todos eles, sei quase tudo. Menino, anão, gnomo: um ouvido, uma grande orelha, um olho enorme de pálpebra semicerrada como quem não quer nada, como quem nem quer ver. Mas pela visão o mundo entra e sai, e se armam todas as cenas, as narradas e as reprimidas: essas, florescerão.

Não há saída, não há como escapar de quem assim contempla e controla e trama. Isso devia assegurar a minha vitória.

• • •

A Mãe que me seguia com seu amor e me perseguia com seus cuidados, sempre que tinha tempo jogava comigo o jogo de esconder. Aqueles eram os meus momentos mais felizes: ficava provado o quanto ela precisava de mim. Para me ocultar, no sítio havia o armário embaixo da escada, onde se guardavam as coisas inúteis. Esse era meu lugar. Só uma aberturinha no alto, quase-escuro. Sempre gostei da sombra: nela sou livre.

Onde não há nenhum canto bom para me enfiar, levanto em torno de mim paredes de ar. Fico parado no meio da sala, quietinho, fecho os olhos com força, quase nem respiro. Chamo: "Pronto!" e minha Mãe anda ao redor fingindo não me ver. Ela me procura, procura por mim preocupada, onde está o meu Menino, onde está? De repente me agarra, me abraça com força e a gente dá risada.

Para mim teria bastado. Mas não sei se bastava para ela.

A Mãe que me validava ainda não se descobrira. A Mãe que confirmava o lugar de todos nós não sabia de si. Eu era um menino inventado por sua Mãe?

De vez em quando, distraída, calculando o montante de sua dívida e a possibilidade de não mais pagar, ela errava no jogo. Mais tarde, levada na maré dos olhares de quem mesmo não estando a seu lado estava dentro dela - mais que filho - desistiria inteiramente de mim?

Sem saber, ou para me ajudar, minha Mãe me revelou caminhos e artimanhas.

Perguntei:

- Mãe, onde estão essas pessoas, onde acontecem essas histórias que você me conta?

- Sempre que não entendo um fato ou ele me assusta, invento histórias a respeito dele, e são as que lhe conto.

- Esse cavalo cor-de-mel de que você às vezes fala, esse cavalo existe?

- Tudo existe. Tudo o que a gente inventa existe, se a gente quer, existe lá no seu mundo, do seu jeito.

E ainda disse:

- Podemos inventar qualquer coisa que nos dê alegria, que nos ajude a escapar. Um amigo, um cavalo, um caminho.

Eu quis perguntar do que ela escaparia e para onde, mas tive medo da resposta e não indaguei. Sempre foi mais prudente inventar perguntas do que escutar respostas.

Dizendo essas frases minha Mãe tinha um estranho olhar, como se soubesse muito bem o que queria: encontrar a hora e o motivo de dizer não e sim.

Ela podia buscar consolo em suas fantasias. Eu tinha mais que isso: podia fazer o cavalo existir de verdade. Bastava eu o criar para mim, tirar assim do nada, do vento, como quem desenha no papel: ele começava a nascer. Erguia a curva da cabeça, espiava com o grande olho, esticava o flanco, mexia as patas fatais.

As histórias de minha Mãe eram o meu conforto. Depois que ela me perdeu, o cavalo cor-de-mel seria a minha salvação.

Tudo isso é um jogo. Um jogo muito perigoso.

(Por isso um dia um visitante montou no cavalo do tempo e galopou - e ficou desaparecido.)

• • •

Não vou crescer mais que isso. Não quero ser adulto como esses com suas vidas regradas, podadas, abortadas. Não quero ter de viver só no que se delimitou como sendo o real.

Não quero perder as minhas asas, por isso não vou crescer - apenas me desenrolar. Assim me infiltro em todas as fendas. Assim caibo em toda parte e ninguém desconfia de mim. Continuam pensando que criança é inocente para sempre amém.

Essa é a minha grande vantagem.

Eu sou o narrador, e não preciso de platéia. Sou o espreitador, e não preciso olhar de frente. Vago pelos corredores e subo nos telhados, entro nos quartos, desço as escadas, limpo um canto de jardim - mas preservo o enigma.

Esse é o meu divertimento. Eu gosto do embaixo, do debaixo, do escuro. Meu lugar é onde se represa o tempo e a minha vontade se exerce.

Ali todos estão para sempre, e me olham e se olham, partes da mesma interminável história de cada pessoa, na qual importa o sonho e a vigília é nada.

LYA LUFT - O RIO DO MEIO (CAPÍTULO 2)




Eu falo de infância e madureza

"Eu era uma esteta, não uma atleta,
e meu único desejo era
o de perambular em êxtase."

C. P. Estés

Era uma vez uma menina que não sabia qual o seu lugar no mundo. Ser uma mulher prendada era o que ensinavam às suas primas e amigas; ela queria destapar o poço que rumorejava dentro de si - e não tinha com quem falar sobre isso.

Nunca seria uma dessas meninas que bordavam lindamente, aprendiam a cozinhar e tocavam piano muito melhor do que ela jamais conseguiria. A música abria-lhe os caminhos do maravilhoso, mas os dedos eram indisciplinados, parecia desprovida de capacidades que qualquer outra menina manejava sem esforço.

Com a melhor das intenções, tentavam adestrá-la: ela, porém, teimava em mirar-se no inenarrável, e muitas vezes não sabiam o que fazer com uma criança assim.

Tinha momentos de euforia, divertia-se imensamente com algum detalhe sem importância, mas também pressentia que tudo era efêmero. Nas horas felizes, de repente sentia a punhalada: tudo isso ia acabar. Um dia, logo ou no futuro, ia acabar. Todos nós íamos acabar - pior ainda - no negrume da morte.

Não sabia o que na madureza aprenderia: que todas as coisas quando acabam são substituídas por outras; que a vida não se reduz mas cresce, e é em tudo um milagre.

• • •

A palavra saboreada a sós: nem com a pessoa mais amada conseguia partilhar inteiramente essa sensualidade da alma, essa beleza que habitava nela ao mastigar no secreto de sua boca a palavra 'açucena', encontrada no livro da escola de manhã.

Correu para a mãe e disse:

- Mãe, eu queria tanto me chamar Açucena!

Os adultos puseram-se a rir, mas ela continuou nesse amoroso jogo com palavras, frases, poemas inteiros, com imagens e invenções. Tinha aprendido: havia felicidades que era impossível dividir.

• • •

Foi uma aluna medíocre. A escola parecia uma prisão da qual espiava o céu pensando em como seria bom estar em casa lendo, com chuva na vidraça.

Em matemática era péssima: que lhe interessava quantos metros de trilhos teriam de ser colocados, em quantas horas, para que o trem fosse pontual? Queria era saber da paisagem, dos destinos que seguiam nos vagões, dos rostos nas janelas. Mesmo adulta, nunca teve certeza de que dois mais dois fossem sempre quatro. Por que não quatro e meio de vez em quando? Na vida, pelo menos, sempre lhe pareceria assim.

Era ruim também em geografia: não conseguia decorar qual o rio mais longo do mundo nem a sua extensão, mas imaginava as águas chapinhando nas margens e a voz dos pescadores chamando uns aos outros quando tinham fisgado um peixe maior.

Em ciências, dados de experimentações não lhe diziam nada. Intrigavam-na os bichos e as plantas, as nervuras da asa de uma abelha: tudo adquiria significado se trouxesse beleza.

Cansava-se nas aulas de gramática: linguagem era sortilégio, e importavam - mais do que as linhas - os caminhos da fantasia.

Por tudo isso, era um fracasso permanente. Não esqueceria os dias em que o pai a chamava ao escritório, onde ouvia as palavras infalíveis:

- Estou profundamente decepcionado com você.

Aquele deus, amado acima de tudo, a encarava como se fosse uma ré. Mais ainda, doía-lhe reconhecer que não ia mudar nem fazer o pai entender que não era birra ou negligência: era falta de talento para ser melhor. Seus dons limitavam-se ao que lhe interessava: então, alçava vôo. No mais, arrastava-se sem alegria, sentindo-se irremediavelmente devedora.

Sobre isso, também, escrevo: sobre dívidas, e sobre aceitarmos que nos cobrem mais do que devemos.

• • •

Por mais bem dada que fosse, para ela a aula era monótona. Pensava no que tinha lido na noite anterior sobre os jardins suspensos da Babilônia; imaginava gramados e palmeiras pendurados entre a terra e o céu.

Para sair do torpor, foi devagar empurrando a caixa de lápis e canetas até à beira da mesa; mais um pouco, esqueceu os jardins aéreos e começou a achar graça. A caixa caiu e esparramou no chão o seu inútil conteúdo; vários dos meninos se jogaram de quatro entre as carteiras para reunir tudo outra vez.

Tumulto na sala, risos. O rosto do professor, vermelho de indignação, indicava a porta e o caminho para a sala do diretor, já tão familiar.

Queriam que fosse obediente e atenta, que não caísse na risada fora de hora, que não devaneasse durante as aulas e finalmente domasse a letra que cambaleava em garranchos pela folha de papel.

Mas ela, infantil ainda, roendo a ponta do lápis, imaginava se os morros que rodeavam a pequena cidade não seriam povoados de duendes. Sonhava que um amado viria, no futuro não muito remoto, libertá-la do destino de ser incompetente e inadaptada e de tão raramente poder fazer o que queria.

Afinal, o que queria? perguntavam os adultos. Ler e sonhar sem nenhuma voz impaciente chamando para cumprir tarefas desinteressantes. Depois, que lhe aplacassem as curiosidades e lhe dessem algo para derrotar os medos.

Mas isso era restrito ao cobiçado reino adulto, onde mulheres usavam jóias, bebiam e fumavam, enquanto os homens entretidos com questões graves pareciam tão seguros de si como se já tivessem resolvido as estranhezas todas: viver, tentar compreender, morrer.

Nenhum deles parecia conhecer as inquietações que faziam da insônia a sua visitante regular.

• • •

Por não ser boazinha, explicaram, pela rebeldia contra tudo que achavam bom para ela, no fim da infância foi mandada para um internato onde trocou o quarto de criança mimada por um dormitório que lhe parecia imenso, dividido em celas por biombos de pano branco, baú de roupas debaixo da cama - tudo impessoal. A certeza do abandono vinha devorar sua alma à noite, e não a deixava de dia, quando estudava, comia, vivia no meio de dezenas de outras meninas.

Numa das longas mesas do refeitório sentavam-na em frente da diretora de olhos como vidro azul.

- A princesa não acha nossa comida boa o bastante - dizia para todas ouvirem. A menina engolia lágrimas, raiva e solidão junto com as refeições preparadas sem afeto.

À tardinha, quando as internas se reuniam no pátio da escola, onde havia uma pequena elevação cheia de árvores e se viam ao longe morros azuis parecidos com os que rodeavam sua cidade, ela ficava quieta, isolada, imaginando como poderia fugir dali.

- Se a gente caminhasse sempre naquela direção, em quantas horas chegaria em minha casa? - perguntou, inocentemente, a uma colega mais velha, que não soube responder, mas tentou confortá-la:

- Daqui a pouco você se acostuma, todo mundo no começo tem saudade.

Mas ela não queria se integrar: precisava, talvez, salvar-se aceitando o que lhe acontecera.

"Se me castigaram tanto, e são pessoas boas, e me amam como dizem, com certeza devo ser muito má." Era o seu jeito de tentar se consolar.

Naquele breve tempo comeu a cada segundo o amargo pão do exílio. Não adiantava saber que pais botavam filhas naquele internato porque as amavam, se preocupavam com elas, porque as queriam bem treinadas para serem boas mães e mulheres no futuro: fora expulsa do seu paraíso.

Meses depois, condoídos, resolveram tirá-la de lá. Nunca esqueceu a sensação de voltar para casa: num trem, cabeça no colo do pai, levada de volta ao céu - embora não o tivesse merecido. Mas a rejeição instalara-se nela: essa falha no chão de seus passos nunca mais se fechou.

Trinta anos mais tarde voltou a esse lugar, agora uma escola moderna. No instante em que pisou no vestíbulo de gastos losangos pretos e brancos teve de apoiar-se na parede para não desmaiar: velhos tormentos a ameaçavam.

Também disso eu falo: do desencontro quando o amor dos adultos deixa o mundo de uma criança em irreparável desordem.




O texto acima foi extraído do livro O Rio do Meio Editora Mandarim, São Paulo, 1996.


domingo, 20 de fevereiro de 2011

Dobradinha

Uma relação que dá certo é aquela em que cada um dos dois potencializa os desejos do outro.(…) O sinal de que uma relação esta engajada em caminho perigoso é quando qualquer um dos dois começa a apontar no outro a razão de uma série de renúncias.(*…) Uma relação que dá certo é aquela em que o outro me torna mais capaz de fazer o que eu desejo. Em que o outro me "autoriza" a fazer o que desejo mais do eu mesmo me autorizaria" Contardo Calligaris



Damo-nos tão bem um com o outro

Na companhia de tudo

Que nunca pensamos um no outro,

Mas vivemos juntos e dois

Com um acordo íntimo

Como a mão direita e a esquerda.(Alberto Caeiro)

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

SALMO 91

Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente descansará.

Direi do SENHOR: Ele é o meu Deus, o meu refúgio, a minha fortaleza, e nele confiarei.

Porque ele te livrará do laço do passarinheiro, e da peste perniciosa.

Ele te cobrirá com as suas penas, e debaixo das suas asas te confiarás; a sua verdade será o teu escudo e broquel.

Não terás medo do terror de noite nem da seta que voa de dia,

Nem da peste que anda na escuridão, nem da mortandade que assola ao meio-dia.

Mil cairão ao teu lado, e dez mil à tua direita, mas não chegará a ti.

Somente com os teus olhos contemplarás, e verás a recompensa dos ímpios.

Porque tu, ó SENHOR, és o meu refúgio. No Altíssimo fizeste a tua habitação.

Nenhum mal te sucederá, nem praga alguma chegará à tua tenda.

Porque aos seus anjos dará ordem a teu respeito, para te guardarem em todos os teus caminhos.

Eles te sustentarão nas suas mãos, para que não tropeces com o teu pé em pedra.

Pisarás o leão e a cobra; calcarás aos pés o filho do leão e a serpente.

Porquanto tão encarecidamente me amou, também eu o livrarei; pô-lo-ei em retiro alto, porque conheceu o meu nome.

Ele me invocará, e eu lhe responderei; estarei com ele na angústia; dela o retirarei, e o glorificarei.

Fartá-lo-ei com longura de dias, e lhe mostrarei a minha salvação.

CRÔNICAS DE SOLIDÃO IV






"Sandra, 50: quer tomar um café com alguém, acima de 35 anos; Maria Eugênia, 36: quer encontrar com alguém, 35-45; Maria de Tal, 42: quer encontrar com alguém, 40-45
Algo que eu gostaria de dizer é: quero conhecer pessoas sérias, com ótimo humor…sou uma pessoa q amo a vida,!!! bjs a todos!!!!
sou ainda um rascunho inacabado, de um sonho perfeito. Digo 'ainda' porque meus traços reais vão aparecendo a medida que me permito ser moldada pelo Amor. Caminho na busca por ver minha real face. Sei que verei essa obra acabada um dia. Serei feliz…Quer adentrar? O risco é todo seu….?!?!? aviso: sempre deixo marcas e marcas eternas" (trechos colhidos de diversas comunidades de relacionamento)





Rebeca



Quem disse que não podia?? audácia da irmã! Ia mesmo colocar fotos, textos e encontrar alguém que prestasse por aí.

Imagina!!!

Afinal, não era lixo, tinha qualidades.

Sabia-se hodierna, corriqueira, bla bla bla. O potencial estava ali, era apenas se mostrar, com todo o seu physique du rôle... expressão que uma cara escreveu pra ela no perfil.B a c a n a! (depois que ela viu o que significava...)

(como era amigo o google tradutor! - poderia até encaixar essa numa conversinha)

Comum, sim. Mas e dai? Pela pesquisa no site podia ver barangas com um quilo de amiguinhos.

E de virtual a internet tem é nada. Virtuais são as pessoas que via na rua? Nem olhavam pra ela!?

E ele? deixou na espera, não deu notícia, isso depois de seis, seis, seis, seis meses de, sei lá, casamento????

"Eu quero é mais” para Rebeca se tornou mantra.

O carinha aí da casa da esquina me olha promentendo e não faz...Vai ver é bicha. Igual meu ex...
O preconceito errada e curiosamente aumentava a autoestima...

Rebeca se expunha com fotos de festas, saídas com amigos, dançando, comendo, bebendo; compulsivamente colocava as imagens de felicidade - real apenas em pixels.
Roupas, boquinhas , rosto, corpo, citações de autores famosos (alguns jamais tinham escrito os textos postados): tudo em vitrine.

Pronta pra ser confundida com uma multidão a fazer o mesmo.


...

Ah, mas aquele loiro que entrou no meu perfil é o sonho perfeito. Com esse eu saio.

Meu ex vai me ver, morrer de raiva, perceber o que perdeu, sentir falta, ficar pasmo, cabisbaixo, bla bla bla.

Pensamentos aflitos, pulsação urgente.Tudo no conforto do lar.

II

Telefone, campainha no máximo, distorcendo som.Uma voz maviosa dizia o oi gata de sempre. Ela a d o r o u. Se sentiu.

E foi.
Para o boteco, ela mesma convidou.

Ah, sou livre e moderna e a foto dele, hummmmmm...
Que macho, hein?

III

O boteco estava encervejado e apinhado. Olhou em volta, reconheceu a face.

Como chego? como falo? meu Deeeus, acho que volto pra casa agora.

Não. Uso meu charme.
Será que essa calça tá boa? A outra arredondava mais a bundinha...

Chegou pertinho, disse boa noite, sorrisos, sentou. Pretendia falar muito. Cabelo pra lá, cabelo pra cá, boquinha distorcendo o batom.

O homem não mostrou os dentes. Olhou, olhou, olhou.
Passou o scanner.

Na ilusão de Rebeca, a conversa amigável. Simpatias em comum. Tudo certo. Pronta pro bote.

Na desilusão dele...
BARALHO.. FDP, q mina feia du caramba PQP... na foto de biquini era mais interessante. Tudo photoshop... Como eu...????

Aí, gata, meu amigo sofreu um acidente. Vou lá. Você pega um táxi? Eu pago.
Voce é dez, tá ligada? Muito linda.

Sem bla bla bla...

IV

Sorriso amarelo, ela continuou a mexer no toucinho cheio de alho e óleo.
Mãos de colesterol, bumbum nada redondo e queixante, não perdeu o rebolado.

Mirou um qualquer não virtual e sorriu.
e bla, bla, bla,bla,bla,bla.

Fisgou. A carência comum fazia deles o casal perfeito.


O convite de casamento foi enviado pelo orkut.

Rosane Gomes


http://imagemdasletras.blogspot.com/

sábado, 5 de fevereiro de 2011

CHAPLIN







Artigo 5º da Constituição Federal

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;
XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;
XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;
XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;
XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;
XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;
XVIII - a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;
XIX - as associações só poderão ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por decisão judicial, exigindo-se, no primeiro caso, o trânsito em julgado;
XX - ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado;
XXI - as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente;
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;
XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;
XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;
XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento;
XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;
XXVIII - são assegurados, nos termos da lei:
a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas;
b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas;
XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País;
XXX - é garantido o direito de herança;
XXXI - a sucessão de bens de estrangeiros situados no País será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do de cujus;
XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;
XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;
XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:
a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direito ou contra ilegalidade ou abuso de poder;
b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal;
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;
XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção;
XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;
XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;
XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;
XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;
XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;
XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;
XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido;
XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:
a) privação ou restrição da liberdade;
b) perda de bens;
c) multa;
d) prestação social alternativa;
e) suspensão ou interdição de direitos;
XLVII - não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
b) de caráter perpétuo;
c) de trabalhos forçados;
d) de banimento;
e) cruéis;
XLVIII - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado;
XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;
L - às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação;
LI - nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei;
LII - não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião;
LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;
LVlI - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
LVIII - o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei;
LIX - será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal;
LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem;
LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;
LXII - a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada;
LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;
LXIV - o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial;
LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária;
LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;
LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;
LXVIII - conceder-se-á habeas-corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;
LXIX - conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas-corpus ou habeas-data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público;
LXX - o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por:
a) partido político com representação no Congresso Nacional;
b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados;
LXXI - conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania;
LXXII - conceder-se-á habeas-data:
a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público;
b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo;
LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;
LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;
LXXV - o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença;
LXXVI - são gratuitos para os reconhecidamente pobres, na forma da lei:
a) o registro civil de nascimento;
b) a certidão de óbito;
LXXVII - são gratuitas as ações de habeas-corpus e habeas-data, e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania.
§ 1º. As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
§ 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
   

LEI MARIA DA PENHA




CONTRA A MULHER


Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, mani- pulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do di- reito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação se-

v - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

MANOEL DE BARROS

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Caio Fernando Abreu







"Ando meio fatigado de procuras inúteis e sedes afetivas insaciáveis."

Ex more






“Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!"

(Álvaro de campos)
“ - Amor será dar de presente um ao outro a própria solidão? Pois é a última coisa que se pode dar de si(...) sei que meu caminho chegou ao fim: quer dizer que cheguei à porta de um começo” (Clarice Lispector)


I

E ela que pensara ter a vida inteira o próprio nome,
sentia o peso do incômodo presente: nome + sobrenome = parentes

Aquela paz inquietante lhe era verossímil.
– não autêntica.
Tirava-lhe os pulmões, as cordas vocais e as pernas:
Precisava da fala autônoma, de correr e de inalar um mais-que-contentamento.

Não pretendia a loucura,
nem muita excitação

Contudo lhe era inviável a letargia tépida em que se metera.

Inadmissível se ausentar da alegria - e da liberdade

Identificara-se e se revoltara com o que lera de Pessoa na noite anterior: 'é este estar entre, /Este quase, Este poder ser que...'

Ainda assim se sentia presa à saudade das reuniões de família enfadonhas
- nelas residia sua única forma de se aquecer.

Ela se aconchegara no marasmo.


II

Fernanda queria mesmo
fazer umas contas
de menos
de mais
de multiplicar
de dividir
para alcançar o tal equilíbrio que as avós e tias tanto anunciavam em sua infância
(eram elas submissas felizes)

Difícil - o cotidiano era muito à l'eau de rose e a vida não vinha com dispositivo avançar/recuar

Não dava pra passar a borracha nas rugas
não dava pra remover as rusgas
não dava pra desfocar o exato-latente momento das mágoas.

Num súbito consentimento de impotência, lamentava:

"Sim e sim: possível fotografar sutilezas de felicidade;
impossível prendê-las em imagem"

(Retina devia ficar na boca: a alegria seria devorada e guardada
no corpo,
no ventre,
como quem tem uma prisão)

...E mais.

"Tudo é tão...
e não só, mas também
e apesar
e até que
e mas
e ora

...E pois.
e tal qual,
e apesar de
e que

...E quanto.
Tão conforme,
tão se bem que."


E simplesmente assim como.


III

Entretanto Fernanda se garantia na insistência:

“A vida borra
distorce
gira
recorta
parece que vai diminuindo aos poucos.”

“Mas ela intriga, hipnotiza, atrai e cativa:


filhos,
amores,
pôr do sol,
luar na praia do Leblon,
café expresso,
cheiro de livro novo,
olhares que se cruzam,
arroz com açafrão,
vidas que se entrelaçam,
abacaxi com canela,
novos amigos,
amigos de sempre,
sorvete de chocolate,
aconchego de filho,
pão quentinho,
gargalhadas,
suco de melancia,
a paz de estar só e bem,
- ou a alegria de estar acompanhado -,
pizza sem culpa,
horas em uma biblioteca,
cheesecake,
cheiro de chuva...


e seguir a vida.
Apalpar a vida.

Compreender.

Compartilhar:
fraqueza,
riso,
saudade,
alegria,
preguiça,
paixão,
receio,
conhecimento,
liberdade
e
paz.”

Sim e sim.

Trazer de volta para o corpo os pulmões, as cordas vocais e as pernas era o que de mais precioso poderia fazer.



Era sua esperança de branda euforia.

E equilíbrio

Rosane Gomes
http://imagemdasletras.blogspot.com/

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

CRÔNICAS DE SOLIDÃO II







Benedito

A mão passa na aspereza. 
O verniz que se foi. Não. É a árvore que regressa.
(...)"
(Carlos D. de Andrade, "Indicações" - em A rosa do povo)

"Ele cresceu com os tempos/ 
Do respeito e dos mais crentes" (José / Piero – Vs. Nazareno de brito)



Palavras, palavras, palavras. Nada além de palavras. Aquele velho carecia: no café de um posto de gasolina, compulsivamente.


No seu delírio, todos pareciam camaradas.
Todos (com risadas de canto) eram atentos à contação de sua história pessoal - das dores e melancolia da vida inteira que preenchiam os as rugas e sulcos de seu rosto. Havia nele a urgência de contar, sim, como havia. Precisava do verbo para segurar o fio de vida que lhe restava.

A cada gole de café ou a cada frase, um sorriso sem retorno, um outro correspondido, alguns atirados ao ar. Ele precisava.

As roupas simplórias, o cheiro de asfalto, o rosto tenso - ele também fazia da loja de conveniência sua sala de análise. O balcão era o divã.

precisava precisava precisava

Seu barulho incomodava atendentes e consumidores. Se irritavam.
Era uma agonia...
O velho falava repetidas vezes: Você não sabe o que é andar na esteira por 9 minutos! É…! Não é mole não!

Você já fez esteira?

E contava sobre o remédio que poderia ter tomado duas vezes: Acho que tomei o da pressão duas vezes, tô tonto, café faz bem.

E falava da prima: minha prima, de segundo grau, fez a mesma coisa, menina!? E foi para no posto de saúde. Perigo, hein?

E falava do nada repetidíssimas vezes: éavida, éavida, éavida, éavida, éavida…

E falava pro vácuo:

A cada dia, quando voltava para casa, tirava o peso da carroça de consertos e o das angústias - contava a uma senhora com olhar de sai-daqui-que-eu-não-aturo-maluco.

Filhos, ausentes - dizia à balconista com olhar de ele-está-sujando-o-balcão.

A mulher, companheira de 40 anos, perdera para os mesmos médicos negligentes com que ele se tratava - confidenciava baixinho a um rapaz de olhar vou-dar-um-chega-pra-lá-no-mané

Ele era um solitário que optava por se distribuir na rua na esperança de pescar uma alma que fosse para compartilhar sua vida. Queria ouvidos, sorriso, conversa e não a esmola que uma enricada quase lhe ofereceu para se livrar do inoportuno barulho.

Sua vontade de dividir a vida era inconveniente.
Ele nem percebeu.
Terminou o café, comeu o biscoitinho grátis, achou graça da água oferecida num copinho de cachaça - Coisa de gente fina, né minha filha?

Não percebeu que o relato de sua vida sufocou o egoísmo dos convivas.

Ele saiu feliz - O café é caro, mas... gente fina! Acho que fiz amizade com aquela…
Ele descansou da tristeza.

Para os que ficaram - conforto e consolo do silêncio.



Rosane Gomes
http://imagemdasletras.blogspot.com/

CRÔNICAS DE SOLIDÃO I






HOUSEWIFE


Palavras, palavras, palavras. Nada além de palavras. Ela adorava falar: no mercado, na feira, nas lojas - compulsivamente. Todos eram bons psicanalistas. Todos (com risadas de canto) eram coniventes com as dores e alegrias que preenchiam seus dias fragilizados pela inércia da vida inteira. Havia urgências, sim, como havia. Precisava do verbo para apalpar a vida.

A cada passo, um sorriso sem retorno, um outro correspondido, alguns atirados ao ar. Ela precisava.

Sempre muito arrumada, perfumada, seus brincos balançando, também fazia do caminhar nas ruas uma conversação com o mundo.

precisava precisava precisava

Os vizinhos não entendiam muito o porquê de tamanho contentamento. Se irritavam.
Era uma agonia...

E, a cada dia, entrava em casa, tirava os luxos.
Perfume, ausente.

Enfim, ela podia oferecer sorriso fraco e franco aos filhos, ao marido. E um presente para a Solidão.

Alívio do silêncio.


Rosane Gomes

http://imagemdasletras.blogspot.com/
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