sexta-feira, 27 de maio de 2011

Trovas do Mestre João Freire Filho, colega e amigo, com quem muito aprendi




Pena que os textos não venham com o som grave e firme daquele cuja voz abraçava amigos e alunos...


A lua, que nos clareia,
é diferente de quem,
recebendo luz alheia,
não ilumina ninguém!

A tormenta, que atordoa,
não distingue, em mar bravio,
a humildade da canoa…
da soberba do navio!…


Bendita a fonte escondida…
que escorre e, por onde passa,
trazendo a graça da vida,
dá tanta vida de graça!

Distante, a lua prateada,
entre nuvens de inconstância,
me lembra a mulher amada…
mais amada… se à distância!

Distante do olhar das ruas,
num sonho que me enternece,
em nosso céu brilham luas
que só nosso amor conhece!…


Fim do amor… Desiludidos,
sabemos juntos, mas sós,
que há silêncios inibidos…
tentando falar por nós!

Imperfeito, eu rogo, aflito,
por nosso amor, que é perfeito:
- Não faças de mim um mito…
que mitos não têm defeito!

Meu coração se acautela
e, imerso em desilusões,
faz da razão sentinela…
contra novas invasões!

Na vida, que te conduz
às mais diversas pelejas,
se não puderes ser luz,
que, ao menos, sombra não sejas!

Fonte:
http://singrandohorizontes.wordpress.com/2011/02/16/joao-freire-filho-1941/

terça-feira, 24 de maio de 2011

"Não vos inquieteis, pois, pelo dia amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal." Mateus 6:34

Eduardo Galeano • Sangue Latino (2009)




CRÔNICAS DE SOLIDÃO III

BORIS

"Vaidade de vaidades, diz o pregador; vaidade de vaidades, tudo é vaidade."(Eclesiastes 1:2)
" E ele lhes cumpriu o seu desejo, mas enviou magreza às suas almas."(Salmos 106:15)


Percepção delirante, alucinações na forma de vozes que o acompanhavam naquela atividade repetitiva. Estava mesmo preso a um estado de natureza humana, encerrado em morada subterrânea e cavernosa com apenas um pequeno acesso à luz. Desde sempre, o pescoço e as pernas presos de modo que permaneciam imóveis; só via os objetos que lhe estavam a um palmo dos olhos. Preso por máquinas, não podia voltar o rosto.

Atrás dele, a certa distância e altura, um fogo ofuscante; entre o claro e o cativo, um caminho escarpado, ao longo do qual um pequeno muro que não lhe permitia ver totalmente os aparentes bonecos de mola que pensava poder manipular.

Tic Tac, Tic tac, tic tac. Único som real: o tempo fugindo.

Alegoria.Era esta sua imagem perfeita. Desta forma colocado, não poderia apenas ver de si mesmo e de seus companheiros algo mais que as sombras projetadas.
Não conseguiria, uma vez forçado a ter imóvel a cabeça durante toda a vida.

Tic tac, tic tac, tic... ("Mas ele foge: irreversivelmente o tempo foge")

Perdera o contato com a realidade, experimentando idéias bastante irracionais, revestidas de uma fala aparentemente lógica. Convencia a todos os outros cativos de suas realidades distorcidas.

O ar seguro (escondendo os grilhões) mascarava seu empobrecimento afetivo.


Delírios e delírios provocavam uma crença em si mesmo; ele era a sua religião.

Pregava aos outros cativos, certo de que o perseguiam. Acreditava ser atormentado, seguido, enganado, espionado ou ridicularizado. Acreditava também que certos gestos, comentários no escritório, tarefas efetuadas pelos outros, eram dirigidos especificamente a ele.

Tinha desatinos de grandeza.

De fato não cria que houvesse nada de real e verdadeiro fora das figuras-desvario que desfilavam entre as baias e divisórias que o rodeavam.

O que aconteceria se se livrasse num átimo das cadeias e do erro em que laborava?

Este cativo fora desatado, obrigado a levantar-se de repente, a volver a cabeça, a andar,a ouvir e a olhar firmemente para a luz. Nada disso aconteceria sem grande pena; a luz, além de lhe ser dolorosa, o deslumbraria, impedindo-lhe de discernir os objetos. Antes via somente sombras.

O que ele responderia a quem lhe dissesse que até então só vira fantasmas, porém que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, via com mais perfeição?
E, se, na hora em que alguém, apontando-lhe as figuras que lhe desfilavam ante os olhos, o obrigasse a dizer o que eram?

Seria sua grande confusão.

Finalmente aconteceu.
Persuadiu-se de que o que antes via era menos real e verdadeiro que os objetos ora contemplados.

Obrigado a enxergar, desviava os olhos doloridos para as sombras que antes lhe eram confortáveis. Poderia ver sem dor?

A realidade o fez subir pelo caminho áspero e escarpado, para só o liberar quando estivesse lá fora, à plena luz do sol.
Dava gritos lamentosos e brados de cólera, apesar do deslumbramento do esplendor ambiente.

Precisaria de algum tempo para afagar a claridade.

Finalmente erguendo os olhos para a lua e as estrelas, contemplou mais facilmente os astros da noite. Depois, o pleno resplendor do dia.

Recordou-se então de sua primeira morada, de seus companheiros de escravidão e da idéia de sua ilusória e hiperbólica sabedoria; se deu parabéns pela mudança sofrida, lamentando ao mesmo tempo a perda do poder sobre outros.

Se na claridade houvesse elogios, honras e recompensas para quem melhor e mais prontamente distinguisse a sombra dos objetos - sendo o mais hábil -, tanto melhor. Afinal, ainda guardava na alma o cativeiro.

Este homem ainda preferia voltar às primeiras ilusões e viver a vida que antes habitava.

Mas os grilhões não estavam mais ali.

Levantou-se, deu um adeus perpétuo e sereno aos colegas de trabalho.

(Soube-se que foi tratar da Personalidade Esquizotípica)

Alívio no delírio.

Rosane Gomes
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