domingo, 22 de fevereiro de 2015

Dies Irae, Clarice Lispector

"Amanheci em cólera. Não, o mundo não me agrada. A maioria das pessoas estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos alguma coisa de que eles precisam. Mentir dá remorso. E não mentir é um dom que o mundo não merece. E nem ao menos posso fazer o que uma menina semiparalítica fez em vingança: quebrar um jarro. Não sou semiparalítica. Embora alguma coisa em mim diga que somos todos semiparalíticos. E morre-se, sem ao menos uma explicação. E o pior – vive-se, sem ao menos uma explicação. E ter empregadas, chamamo-las de uma vez de criadas, é uma ofensa à humanidade. E ter a obrigação de ser o que se chama de apresentável me irrita. Por que não posso andar em trapos, como os homens que às vezes vejo na rua com a barba o peito e uma bíblia na mão, esses deuses que fizeram da loucura um meio de entender? E por que, só porque eu escrevi, pensam que eu tenho que continuar a escrever? Avisei a meus filhos que amanheci em cólera, e que eles não ligassem. Mas eu quero ligar. Quererei fazer alguma coisa definitiva que rebentasse com o tendão tenso que sustenta meu coração.
E os que desistem? Conheço uma mulher que desistiu. E vive razoavelmente bem: o sistema que arranjou é ocupar-se. Nenhuma ocupação me agrada. Nada do que eu já fiz me agrada. E o que fiz com amor estraçalhou-me. Nem amar eu sabia, nem amar eu sabia."

DIES IRAE - Clarice Lispector 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...