quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

"...a vida, meu rico senhor, compõe-se de quatro ou cinco situações, que as circunstâncias variam e multiplicam aos olhos."


(Machado de Assis)

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Cassiano Ricardo





Não adianta querermos ser claros.
A lógica não convence, a explicação nos cansa.
O que é claro não é preciso ser dito.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Penetra surdamente no reino das palavras...




A arte é um esquivar-se a agir, ou a viver. A arte é a expressão intelectual da emoção, distinta da vida, que é a expressão volitiva da emoção. O que não temos, ou não ousamos, ou não conseguimos, podemos possuí-lo em sonho, e é com esse sonho que fazemos arte. Outras vezes a emoção é a tal ponto forte que, embora reduzida à acção, a acção, a que se reduziu, não a satisfaz; com a emoção que sobra, que ficou inexpressa na vida, se forma a obra de arte. Assim, há dois tipos de artista: o que exprime o que não tem e o que exprime o que sobrou do que teve.

Bernardo Soares.Livro do Desassossego

Pedaços de palavras ao leite, mel e ácido de William Blake:





“No tempo de semeadura, aprende; na colheita, ensina; no inverno, desfruta.
O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria.
A Prudência é uma rica, feia e velha donzela cortejada pela Impotência.
Aquele que deseja e não age engendra a peste.
(...) O tolo não vê a mesma árvore que o sábio vê.
(...) À laboriosa abelha não sobra tempo para tristezas.
As horas de insensatez, mede-as o relógio; as de sabedoria, porém, não há relógio que as meça.
(...) A raposa culpa o ardil, não a si mesma.
Uma só idéia impregna a imensidão.
Dize sempre o que pensas e o vil te evitará.
Tudo em que se pode crer é imagem da verdade.
(...)A verdade jamais será dita de modo compreensível, sem que nela se creia.
Suficiente! ou Demasiado."

[Use com moderação]

"Digo 'alô' ao inimigo/ Encontro um abrigo no peito do meu traidor/ Faz parte do meu show, faz parte do meu show..."





Que o amor seja sem hipocrisia, sem faz de conta;
Detestai o mal e tem misericórdia do agente do mal;
Não julgueis sob pena de ser também perverso e detestável…

No zelo, não sejais remissos, preguiçosos, indolentes, postergadores, "mornos" "mais ou menos", "meio barro"...
(Caio Fabio - comentário sobre Romanos, 12)

Vence o mal com o bem.

A suspeita que deforma o homem





O folclore alemão conta a história de um homem que, ao acordar, reparou que seu machado desaparecera.
Furioso, acreditando que seu vizinho o tivesse roubado, passou o resto do dia observando-o.
Viu que tinha jeito de ladrão,andava furtivamente como ladrão,sussurrava como um ladrão que deseja esconder seu roubo.
Estava tão certo de sua suspeita que resolveu entrar em casa, trocar de roupa e ir até a delegacia dar queixa.
Assim que entrou, porém, encontrou o machado que sua mulher havia colocado em outro lugar.
O homem tornou a sair, examinou de novo o vizinho, e viu que ele andava, falava e se comportava como qualquer pessoa honesta.

"Última flor do Lácio, inculta e bela/ És, a um tempo esplendor e sepultura:/ (…)Amo-te assim, desconhecida e obscura"



Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. 
Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente, Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, NÃO quem escreve mal português, NÃO quem não sabe sintaxe, NÃO quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografaria sem ípsilon, como escarro direto que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografaria também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.



* Texto publicado originariamente em "Descobrimento", revista de Cultura n.º 3, 1931, pp. 409-410, transcrito do "Livro do Desassossego", por Bernardo Soares (heterónimo de Fernando Pessoa), numa recolha de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha; ed. de Jacinto do Prado

Tem o certo. Tem o errado. E tem todo o resto. (Cazuza)




Da viagem 
 
Mais importante não é o lugar, mas o estado de ânimo, pois o ânimo não se torna escravo de nenhum lugar. Vive com essa convicção: Não nasci para um único lugar, a minha pátria é esse mundo inteiro”.
 
‘Trinta tiranos’, fala, ‘ rodearam Sócrates, mas não puderam quebrantar seu espírito’. Que importa quantos são os senhores? A servidão é uma só; se alguém a despreza, por maior que seja a dominação, é livre.
 
 
Da qualidade da vida comparada com sua duração 
 
O que importa não é viver muito, mas viver com qualidade. Com efeito, viver muito tempo quem decide é o destino. Viver plenamente, o teu espírito. A vida é longa se for vivida com plenitude. Assim, ela está plena quando a alma tomou posse do bem que lhe é próprio e não depende senão de seu poder.
 
Desejas saber a diferença existente entre aquele que despreza a sorte e que, após ter cumprido todas as exigências da vida, conheceu a felicidade e aquele homem que apenas viu os anos passarem em branco? Um ainda vive após ter morrido; o outro, antes de morrer, já havia deixado de viver. 
 

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

"Hora da palavra,quando não se diz nada/Fora da palavra,quando mais dentro aflora/Tora da palavra,rio, pau enorme,nosso pai..."






Da Futilidade das meias-medidas  -  carta de Sêneca a  Lucílio ( entre 63 e 65 d.C.)    


“Certas coisas só se mostram para quem está presente;(...) Diz um velho provérbio que o  gladiador se decide na arena (...)   Como costuma acontecer, pode-se formular sobre o que convém no modo de agir, em  linhas gerais, por meio de alguém ou por escrito; tais conselhos não são apenas para os  ausentes, mas também são dados aos pósteros; porém, quando deve ser feito e de que  modo, ninguém pode aconselhar à distância: deve-se deliberar no momento da ação.  

Não basta estar presente, mas permanecer vigilante e observar a ocasião propícia; deves  procurar encontrá-la e, se a vires, deves prendê-la e, com todo ímpeto, todas as forças,  faça isso para te libertares (...) desata - mais que rompe -aqueles nós nos quais te  encontras enredado. Se não existir outro modo de fazê-lo, simplesmente os rompa.   

Ninguém é tão tímido que prefira ficar sempre pendente a cair de uma vez por todas. (...) não te retires no momento de agir.   É assim, Lucílio, poucos são presos pela servidão, muitos se deixam prender por ela.   (...) se hesitares,(...) nunca encontrarás saída. O náufrago não pode nadar com bagagem. (...)sofremos por ter desperdiçado a vida.(...)Ninguém se preocupa com viver bem, mas  com viver muito; todos podemos agir de modo a viver bem mesmo que não saibamos por  quanto tempo...”    
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“O que nos fazemos com a nossa vida , por que nos nos desperdiçamos tanto, por que    temos uma auto estima tão baixa ?”   “Por que, em geral, nos alegramos e divertimos tão pouco, mesmo nos momentos bons?”    ( programa Sempre um papo - Lya Luft - 14/6/2005)  
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Convite (fragmento)  

“A quatro mãos escrevemos este roteiro   para o palco de meu tempo:   o meu destino e eu.   Nem sempre estamos afinados,   nem sempre nos levamos   a sério.”   (Lya Luft)      

"Só não existe remédio é para a sede do peixe."





O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.
O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim, de repente, na horinha em que se quer, de propósito – por coragem. Como não ter Deus?! (...) O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo.

(Grande Sertão: Veredas)


"Em Ave, palavra, obra póstuma de Guimarães Rosa, este anúncio e este elogio à palavra convida-nos a voar e a inaugurar um tempo de sensibilidade, num tom de otimismo que é a marca das verdadeiras revoluções. Rosa escreve, por exemplo: "Só não existe remédio é para a sede do peixe."(1) Uma vez que por sua própria natureza já está mergulhado no que mata a sede. Em outras palavras, tudo tem solução, e se o peixe viesse a sentir sede, bastaria beber um pouco do elemento que tudo lhe dá."

(Gabriel Perissé, Mestre em Literatura Brasileira - USP)

"Vem, saciemo-nos de amores até a manhã; alegremo-nos com amores." (Provérbios 7:18)






"Sionésio e Maria Exita - a meios-olhos, perante o refulgir, o todo branco. Acontecia o não-fato, o não-tempo, silêncio em sua imaginação. Só o um-e-outra, um em-si-juntos, o viver em ponto sem parar, coraçãomente: pensamento, pensamor. Alvor. Avançavam, parados, dentro da luz, como se fosse o dia de Todos os Pássaros."

(Substância, conto de Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa)

Extraordinária Lucidez





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...”essa [minha] insistência no cotidiano é porque a gente só tem ele.
É muito difícil a gente se dar conta de que todos nós, artistas ou não, pessoas pobres ou ricas, nobres ou plebéias só temos o cotidiano e o cotidiano de todo mundo é absolutamente ordinário - ele não é extraordinário.

O cotidiano da rainha da Inglaterra deve ser tão insuportável como o de uma lavadeira(…) então, a cada um de nos cabe a vida comum (…) e eu tenho absoluta convicção de que é atrás e é através do cotidiano que se revelam a metafísica, a beleza.

A gente fala assim : " que vida bacana a santa Joana D'arc" (…) a gente quer uma vida heróica, nos todos aspiramos a uma vida heróica; ‘Deus me livre dessa vidinha minha, uma vidinha sem nenhum encanto’.

Mas essas vidas ficaram encantadoras depois que passaram. Já pensou Joana d'arc? que tristeza? presa, sujeita à morte, aquela roupa horrorosa, na poeira ?
E Eintein?( ‘ah o emprego que nao sai?’) fazendo cartinha pra arrumar emprego? Quem já leu biografia o dele sabe.

O cotidiano é na poeira e para todos nós.

E o mais bacana que tem é a gente tirar o nosso heróico, o nosso heroísmo deste cotidiano.

Tem um livro fundante pra nós , que se chama A Negação da Morte de Ernest Becker - ele fala: ‘O nosso heroísmo é aqui ó.’ É no pequenininho e naquela paciência impossível de ter que eu tenho que ter.

E você diz ' Deus me livre lidar com esse doente , com isso, com aquilo…eu queria viver como… e você bota um personagem bem famoso.

O personagem não existe! Não existe!

Caiamos na real… bonita é a nossa vida, a nossa vida é linda, mas é mesmo, é linda(…)

Só a morte dá um perfil pra nós - depois que a pessoa morre, (aquela pessoa anônima, de vida mais ordinária) ganha um perfil, um retrato - e as vezes heróico, porque viveu a vida que lhe foi dada.
Então o cotidiano pra mim é o grande tesouro…

Ortega y Gasset falou : admirar-se daquilo que é natural é que é o bacana... Admirar-se da água aqui ó….. quem se admira? ‘H2O’… conheço isso demais...

...Água, abacaxi, feijão, quem entende feijão? Alguém entende? Só no prato.

Mas a alma criadora , sensível, um belo dia se admira desse ser extraordinário que ninguém entende…

A vida é extraordinária.

Não sei que falou isso: admirar-se de um bezerro de duas cabeças qualquer débil se admira…
Mas admirar-se do que é natural… só quem tá cheio de Espirito Santo.

E O mundo é magnífico. Magnífico
É bom demais estar vivo. É bom demais
E eu quero esta vida, essa vidinha - essa que é a boa, com as chaturinhas dela, as coisas difíceis…
…e é maravilhoso, porque, quando você cai nesse lugar aí, você aceita sua vida, então você não sai à procura de heroísmos extraordinários.


Nós todos queremos no nosso currículo um ato heróico...
Às vezes ato mais heróico é o mais anônimo, mais silencioso que só Deus sabe -
a gente não conta nem pra pessoa mais intima nossa.
Isso que é a maravilha, né?
Isso é uma coisa valiosa demais...


A vida humana.



Trancrição de entrevista concedida por Adélia Prado no programa "sempre um papo" da TV Senado. -

http://www.youtube.com/watch?v=RjwnoSYVfmg&feature=related

Viver não é suficiente







Quem deseja viver de verdade precisa, sem medo de errar, de gravidade; daquela gravidade que enraiza, cria limo e esmerilha pontas afiadas. Não basta destacar folhinhas do calendário, copular, batizar netos e reclamar do temporal. Há de descer dos devaneios parabotar os pés no chão escarpado do dia-a-dia. Ilusões sabotam a vitalidade de existir.

Quem deseja viver de verdade precisa rodear-se de várias opiniões – "Na multidão dos conselheiros se encontra a sabedoria".Cofres guardam diamantes, mas não servem para gente -além de afixiar, não deixam entrarréstias da vida. O contrapé gerado pelos duvidosos ajuda a distender os limites das convicções. A discordância dos inquiridores faz repensar velhas ideias.

Quem deseja viver de verdade precisa portar-se com elegância, e diligentemente. A polidez tem que ser nutrida - ela não nasce por acaso. Uma vez a candura hospedada no espírito, torna-se mister vigiá-la.Toda a conversa deve ser mansa, todo o encontro, prudente, e toda a despedida, lastimosa.

Quem deseja viver de verdade precisa arrepender-se com frequência; ousar tanto, que os cadarços, moídos e frouxos, careçam sempre de novos laços. Que ninguém, ao prescrutar minunciosamente a alma, se assombre. Luzes e trevas pedem para que não se evitem auditagens honestas. Não é preciso temer rejeição. A Divindade não se chateia com inadequações. Criados incompletos, carecemos do espaço pedagógico de errar.

Quem deseja viver de verdade precisa aliar virtude à coragem. Os maus são atrevidos. Os sem-caráter também ousam. Denodo só vale quando vem ladeado com siso. Encarar de peito aberto o perigo, só quando se considerar o próximo como um delicado cristal;e os instantes, como eternidade.

Quem deseja viver de verdade precisa saber chorar os mortos, e nunca envergonhar-se de suas dores viscerais. Não há como escapardo sorvedouro que devora as pessoas queridas. Mas na angústia da morte, aprende-se, como disse Kierkegaard, “o que há de mais elevado”. Viver é calar os eufemismos para essa solidão devastadora que entristece orfãos,viúvas,pais desfilhados e amigos amputados de amigos.

Quem deseja viver de verdade precisa aprender a inspirar os crepúsculos, a enamorar-se das noites, a morgar em feriados chuvosos, a dourar farofa para uma comidinha dominical, a recitar poesia e rumorejar os sentimentos do poeta.

Quem deseja viver de verdade precisa contentar-se em nunca resolver os enigmas do porvir, a rota dos labirintos, o caminho da serpente sobre a pedra, eo curso das andorinhas que anunciam o verão. Viver é dar de ombros para as respostas imprecisas e para as explicações semiplenas. Quem vive navega em rotas inéditas e portos inalcançáveis; sabe que o destino é insólito.

Ricardo Gondim
Soli Deo Gloria

A um ausente




“Tenho razão de sentir saudade,tenho razão de te acusar.Houve um pacto implícito que rompeste e sem te despedires foste embora.(...)
Antecipaste a hora.Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas....” (Drummond)


"Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta (...) Trouxeste a chave? (Drummond)


(José Saramago - 16/11/1922 - 18/6/2010)

Tristeza por ter perdido alguém cujos livros ora me revoltavam, ora me apaixonavam.
Sim, perdi, não porque o tivesse na convivência pessoal ou em presença (como queiram);
perdi a futura convivência com novas brigas e identificações. Eu ousava falar com ele em cafés, passando por lunática; fechava livros prometendo não mais lê-los. Lia 3, 4 vezes o mesmo livro.
Saí de uma livraria recentemente brigada com ele (“como você ousa se referir a Eclesiastes desse jeito?”). O livro se chama Caim.

O conto da ilha desconhecida foi uma demostração de afeto e doçura - logo dele, cuja “montagem humana” era ácida.

As Intermitências da Morte foi um tapa na cara. Ensaio sobre a cegueira, outro.

O Ano da Morte de Ricardo Reis, deixei pela metade. (uma das maravilhas de ser leitor é a liberdade; outra, a intimidade com os textos - e com um cheiro dos livros que nenhum perfume francês jamais alcançará)

E as epígrafes! Procurei feito doida (como também um monte de gente que conheço) o Livro dos Conselhos (“ Se podes olhar, vê; se podes ver, repara”); o Livro das Evidências (“Tu sabes o nome que te deram, mas tu desconheces o nome que tens”) - pra, depois, ler entrevista no jornal: “eu inventei esses livros”.

Ah, ele seduzia... e como!

E o seu maior encanto era o de não se querer encantador.

Um delicioso saber agridoce se ausentou dos meus olhos hoje. E não sem pena. E não sem dor.
Não sei se pessoas por aí entendem o que é de fato o amor pela leitura. Pois digo: é um amor visceral, é amor eterno (livros nunca nos abandonam), é o amor pela imagem (sim, escrita é imagem em grafemas), é amor que faz doer, mas sem dolo, é amor que aquece, enraivece, acolhe, instiga, vicia (sempre queremos uma dose a mais). É amor. Ponto.

Quando tenho a notícia de que um escritor morreu, meu coração sangra. Menos arte e talvez mais maldade no mundo. A beleza das palavras não é para poucos. É para todos. Basta chegar...
Não se espantem com meu sentimento. Não acusem. É legítimo. Louca? Sou. Já abdiquei da companhia de namorado pra ler - mesmo sendo uma adolescente que sempre adorou permas, tríceps, bíceps...o pacote completo. Louca e estranha. Esquisita na visão de algumas muitas pessoas. Até hoje sou desigual. Mas quando eles (os livros) me olham daquele jeitinho faceiro e sedutor eu agarro. e beijo com os olhos.

Jamais percam a chance de ler (só vai aqui um aviso: José de Alencar provoca enjoos e gastrite, tomem café da manhã leve).

Acreditem: a cura da alma, muitas vezes, se faz por meio das palavras. Até porque a leitura é ato sagrado, é liturgia.


Rosane Gomes

"O problema da comunicação era o de perto" (Millôr)





A incomunicabilidade humana é um fato. em parte pela nossa natural dificuldade, em parte porque “a alma do outro é uma floresta escura”, como disse Rilke(...) A realidade é que nos comunicamos pouco, e mal, e somos assim. Essa é uma condição natural dos humanos, como nascer com algum defeito físico do qual não temos culpa, mas perturba.
Além disso, há no outro uma reserva de mistério, um desejo de privacidade, que se defende de intrusões, por mais ansiedade que isso nos cause.
Saber se comunicar(...) é uma dádiva. Abre portas e janelas, promove generosidade e acolhimento. mas é raro. Em geral somos enrolados, tímidos, guardamos rancor, ou somos arrogantes - outra face da insegurança e do medo.
De saída olhamos o outro com suspeita: será que ele me entende? Será que fala a verdade? Será que posso baixar a guarda?
Casamentos, famílias, trabalho, projetos podem acabar em decepção: porque desejamos a perfeição, não conseguimos produzir o razoável.
Nossa ambiguidade não ajuda: quero amar, mas não quero que o outro descubra o que preciso esconder, e quem sabe ele há de querer me controlar. Penso em ficar só, mas minha natureza pede diálogo e afeto.(...)
Temos medo de falar, e de calar; terror de não ser ouvidos, e de ser escutados. Quero falar, mas exijo ser inteiramente compreendido, e assim me frustro; prefiro calar, para não assumir a responsabilidade sobre o efeito das minhas palavras, e assim, me isolo.
(...) Se nem sei direito quem sou, como conhecer melhor o outro, meu pai, meu filho, meu parceiro, meu amigo ou competidor(...) Como cuidar para que uma relação floresça em vez de nos envenenar?
No relacionamento em que se deseja boa parceria, importa(...) o equilíbrio entre rotina e mistério, surpresa e monotonia;(...) cada um tem a sua reserva pessoal impossível de partilhar mesmo no maior amor.
Sempre seremos dois: ser um só é ilusória promessa de um romantismo cruel.
(...)amor não é controle. Comunicar-se bem nada tem a ver com partilhar tudo(...)
Porém temos uma verdadeira obsessão por nos intrometer em tudo, saber tudo(...)
Perdemos, em algum momento, um pudor que não era hipocrisia.(...) Queremos abrir braços, pernas e alma(...) o secreto nos parece ofensivo.
Infantilmente, esperamos que nos entendam. Mais grave ainda: queremos que nos aprovem.

(Lya Luft, Múltipla Escolha)

Drummond com excesso de mel





Aos Namorados do Brasil

Carlos Drummond de Andrade


Dai-me, Senhor, assistência técnica
para eu falar aos namorados do Brasil.
Será que namorado algum escuta alguém?
Adianta falar a namorados?
E será que tenho coisas a dizer-lhes
que eles não saibam, eles que transformam
a sabedoria universal em divino esquecimento?
Adianta-lhes, Senhor, saber alguma coisa,
quando perdem os olhos
para toda paisagem ,
perdem os ouvidos
para toda melodia
e só vêem, só escutam
melodia e paisagem de sua própria fabricação?

Cegos, surdos, mudos - felizes! - são os namorados
enquanto namorados. Antes, depois
são gente como a gente, no pedestre dia-a-dia.
Mas quem foi namorado sabe que outra vez
voltará à sublime invalidez
que é signo de perfeição interior.
Namorado é o ser fora do tempo,
fora de obrigação e CPF,
ISS, IFP, PASEP,INPS.

(...) O tempo,
afiando sem pausa a sua foice,
espera que o namorado desnamore
para sempre.
Mas nascem todo dia namorados
novos, renovados, inovantes,
e ninguém ganha ou perde essa batalha.

Pois namorar é destino dos humanos,
destino que regula
nossa dor, nossa doação, nosso inferno gozoso.
E quem vive, atenção:
cumpra sua obrigação de namorar,
sob pena de viver apenas na aparência.
De ser o seu cadáver itinerante.
De não ser. De estar, e nem estar.

O problema, Senhor, é como aprender, como exercer
a arte de namorar, que audiovisual nenhum ensina,
e vai além de toda universidade.
Quem aprendeu não ensina. Quem ensina não sabe.
E o namorado só aprende, sem sentir que aprendeu,
(...)


Há que aprender com as mulheres
as finezas finíssimas do namoro.
O homem nasce ignorante, vive ignorante, às vezes morre
três vezes ignorante de seu coração
e da maneira de usá-lo.

Só a mulher (como explicar?)
entende certas coisas
que não são para entender. São para aspirar
como essência, ou nem assim. Elas aspiram
o segredo do mundo.

Há homens que se cansam depressa de namorar,
outros que são infiéis à namorada.
Pobre de quem não aprendeu direito,
ai de quem nunca estará maduro para aprender,
triste de quem não merecia, não merece namorar.

Pois namorar não é só juntar duas atrações
no velho estilo ou no moderno estilo,
com arrepios, murmúrios, silêncios,
caminhadas, jantares, gravações,
(...)
Namorar é o sentido absoluto
que se esconde no gesto muito simples,
não intencional, nunca previsto,
e dá ao gesto a cor do amanhecer,
para ficar durando, perdurando,
som de cristal na concha
ou no infinito.

Namorar é além do beijo e da sintaxe,
não depende de estado ou condição.
(...)
A limitação terrestre, que os persegue,
tenta cobrar (inveja)
o terrível imposto de passagem:
"Depressa! Corre! Vai acabar! Vai fenecer!
Vai corromper-se tudo em flor esmigalhada
na sola dos sapatos..."
Ou senão:
"Desiste! Foge! Esquece!"
E os fracos esquecem. Os tímidos desistem.
Fogem os covardes.
Que importa? A cada hora nascem
outros namorados para a novidade
da antiga experiência.
E inauguram cada manhã
(namoramor)
o velho, velho mundo renovado.

Leiam Joaquim Manuel de Macedo




O texto abaixo foi escrito no século XIX. Poderia estar, ainda hoje, no jornal, na inertent, vinculado, por exemplo, ao seguinte link no youtube:



“No pronome Eu se resume atualmente toda a política e toda a moral. É certo que estes conselhos devem ser praticados, mas não confessados; bem sei, bem sei, isso é assim: a hipocrisia é um pedaço de véu furtado a uma virgem para cobrir a cara de uma mulher devassa; tudo é assim, mas o que querem?...(...) ainda não me pude corrigir do estúpido vício da franqueza.
Eu digo as coisas como elas são: há só uma verdade neste mundo, é o Eu; isto de pátria, filantropia, honra, dedicação, lealdade, tudo é peta(...); ou (para me exprimir no dialeto dos grandes homens) tudo é poesia.
Pátria!... é verdade: por exemplo, que é a pátria?... ora eu vou dizer em poucas palavras o que ela é, pelo menos aqui na nossa terra.

A pátria é uma enorme e excelente garoupa: os ministros de estado a quem ela está confiada, e que sabem tudo muito, mas principalmente gramática e conta de repartir, dividem toda nação em um grupo, séquito e multidão: o grupo é formado por eles mesmos e por seus compadres, e se chama – nós -; o séquito, um pouco mais numeroso, se compõe dos seus afilhados, e se chama – vós -; e a multidão, que compreende uma coisa chamada oposição e o resto do povo, se denomina – eles -; ora aqui vai a teoria do eu: os ministros repartem a garoupa em algumas postas grandes, e muitas mais pequenas, e dizem eloqüentemente: “as postas grandes são para nós, as mais pequenas são para vós” e finalmente jogam ao meio da rua as espinhas, que são para eles. O resultado é que todo o povo anda sempre engasgado com a pátria, enquanto o grupo e o séquito passam às mil maravilhas à custa dela!”

(Trecho do romance A carteira do meu tio, Joaquim Manuel de Macedo, Porto Alegre: LP&M, 2001.)

Luxo possível





Ensinamento


Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

(Adélia Prado)

A poética sucinta de Helena Parente Cunha




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Senhor solitário com pequeno defeito físico procura moça de 30 anos para lhe fazer companhia. Não precisa ser bonita. Endereço tal.

Desta vez ela não disfarçou a corcunda nem pôs óculos escuros para esconder o estrabismo. Contratada.

(CUNHA, Helena Parente. Cem mentiras de verdade, 1985)
_______________________________

Recomendo: http://www.sistemaodia.com/noticias/lei-proibe-empresas-de-discriminar-funcionarios-76600.html

A paz que eu não quero...




Eu sei, mas não devia

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
(...)
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.

Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.(1972)

Marina Colasanti

O texto acima foi extraído do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.

Para as mães, duas doses de Drummond. Cheers!




Suas Mãos

Aquele doce que ela faz
quem mais saberia fazê-lo?
Tentam. Insistem, caprichando.
Mandam vir o leite mais nobre.
Ovos de qualidade são os mesmos,
manteiga, a mesma,
iguais açúcar e canela.
É tudo igual. As mãos (as mães?)
são diferentes.
_______________________________

DISTINÇÃO

O Pai se escreve sempre com P grande
em letras de respeito e de tremor
se é Pai da gente. E Mãe, com M grande.
O Pai é imenso. A Mãe, pouco menor.
Com ela, sim, me entendo bem melhor:
Mãe é muito mais fácil de enganar.
(Razão, eu sei, de mais aberto amor.)

(Drummond, in: Boitempo)

Sugestão de leitura - Sobre a Brevidade da Vida -





“(...)reivindica o teu direito sobre ti mesmo e o tempo que até hoje foi levado embora, foi roubado ou fugiu, recolhe e aproveita esse tempo. Convence-te de que é assim como te escrevo: certos momentos nos são tomados, outros nos são furtados e outros ainda se perdem no vento. Mas a coisa mais lamentável é perder tempo por negligência. Se pensares bem, passamos grande parte da vida agindo mal, a maior parte sem fazer nada, ou fazendo algo diferente do que se deveria fazer.

(...)procura fazer aquilo que me escreves: aproveita todas as horas; serás menos dependente do amanhã se te lançares ao presente. Enquanto adiamos, a vida se vai. Todas as coisas(...) nos são alheias; só o tempo é nosso. A natureza deu-nos posse de uma única coisa fugaz e escorregadia, da qual qualquer um que queira pode nos privar. E é tanta a estupidez (...)que, por coisas insignificantes e desprezíveis, as quais certamente se podem recuperar, concordam em contrair dívidas de bom grado, mas ninguém pensa que alguém lhe deva algo ao tomar o
seu tempo, quando, na verdade, ele é único, e mesmo aquele que reconhece que o recebeu não pode devolver esse tempo de quem tirou.

(...)como diz um sábio ditado, é tarde para poupar quando só resta o fundo da garrafa. E o que sobra é muito pouco, é o pior.

(Seneca)

Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada de "O Guardador de Águas"





I

Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
- Imagens são palavras que nos faltaram.
- Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
- Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.

(Manoel de Barros)

Nosso rio, canto, casa, quarto, estrada - aconchego





O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

(Alberto Caeiro )

Jabor



Crônica do Amor

Ninguém ama outra pessoa pelas qualidades que ela tem, caso contrário os honestos, simpáticos e não fumantes teriam uma fila de pretendentes batendo a porta

O amor não é chegado a fazer contas, não obedece à razão. O verdadeiro amor acontece por empatia, por magnetismo, por conjunção estelar.Ninguém ama outra pessoa porque ela é educada, veste-se bem e é fã do Caetano.

Isso são só referenciais.Ama-se pelo cheiro, pelo mistério, pela paz que o outro lhe dá, ou pelo tormento que provoca.Ama-se pelo tom de voz, pela maneira que os olhos piscam, pela fragilidade que se revela quando menos se espera.

Você ama aquela petulante. Você escreveu dúzias de cartas que ela não respondeu, você deu flores que ela deixou a seco.

Você gosta de rock e ela de chorinho, você gosta de praia e ela tem alergia a sol, você abomina Natal e ela detesta o Ano Novo, nem noódio vocês combinam. Então?

Então, que ela tem um jeito de sorrir que o deixa imobilizado, o beijo dela é mais viciante do que LSD, você adora brigar com ela e ela adora implicar com você. Isso tem nome.

Você ama aquele cafajeste. Ele diz que vai e não liga, ele veste o primeiro trapo que encontra no armário. Ele não emplaca uma semana nos empregos, está sempre duro, e é meio galinha. Ele não tem a menor vocação para príncipe encantado e ainda assim você não consegue despachá-lo.

Quando a mão dele toca na sua nuca, você derrete feito manteiga. Ele toca gaita na boca, adora animais e escreve poemas. Por que você amaeste cara?

Não pergunte pra mim; você é inteligente. Lê livros, revistas, jornais. Gosta dos filmes dos irmãos Coen e do Robert Altman, mas sabe que uma boa comédia romântica também tem seu valor.

É bonita. Seu cabelo nasceu para ser sacudido num comercial de xampu e seu corpo tem todas as curvas no lugar. Independente, emprego fixo, bom saldo no banco. Gosta de viajar, de música, tem loucura por computador e seu fettucine ao pesto é imbatível.

Você tem bom humor, não pega no pé de ninguém e adora sexo. Com um currículo desse, criatura, por que está sem um amor?

Ah, o amor, essa raposa. Quem dera o amor não fosse um sentimento, mas uma equação matemática: eu linda + você inteligente = dois apaixonados.

Não funciona assim.

Amar não requer conhecimento prévio nem consulta ao SPC. Ama-se justamente pelo que o Amor tem de indefinível.

Honestos existem aos milhares, generosos têm às pencas, bons motoristas e bons pais de família, tá assim, ó!

Mas ninguém consegue ser do jeito que o amor da sua vida é! Pense nisso. Pedir é a maneira mais eficaz de merecer. É a contingência maior de quem precisa.

(Arnaldo Jabor)

domingo, 12 de dezembro de 2010

O trágico e o lúdico

Rir e chorar dependem do lado para que se olha. Ali na frente, poças lodocentas deslustram a alma. Aqui perto, o vôo irreverente dos pardais desenrugam os lábios para que se abra um largo sorriso. Basta ver a sorte inclemente dos miseráveis para perder o sono. Não é fácil conviver com a desigualdade social que rouba sonhos, tormenta, mata. Mas alegria explode no vértice do sofrimento; bastam o abraço despretensioso do neto, a alegria do casal que adotou, o zelo resiliente da mãe do filho com paralisia cerebral e o trabalho anônimo do voluntário.

Rir e chorar dependem do caminho que se escolheu na esquina deserta. Estradas largas levam ao calabouço. Atalhos despencam em abismos. Avenidas não passam de passarelas para o inferno. Trilhas inóspitas, virgens, são fascinantes. Quanta alegria na aventura de desbravar fronteiras. A felicidade mora alguns centímetros depois da linha do horizonte. Arriscar é tonificante. Fracassar, triunfar, instigar e suplantar-se transformam o tédio em disposição.

Rir e chorar dependem das expectativas que enlaçam a alma. Ilusões implausíveis exaurem, fatigam, esfolam. Promessas irreais, mentirosas, entorpecem como morfina. Ufanismos terminam em ressaca. Coragem de encarar a existência sem quimera, sem negação, sem fuga, produz um júbilo diferente.

Rir e chorar são duas faces no baralho da vida.

Rio e choro sem culpa, a vida é ao mesmo tempo trágica e lúdica.

(Ricardo Gondim)


Soli Deo Gloria
14-04-10

O Ponto Cego - Leiam!



Rafael Raposo em cena de "O Ponto Cego"
crédito da imagem: crédito Roberto Filho





Eu sou o que deixaram sob o tapete, o que à noite se esgueira pelos corredores, chorando. Sou o riso no andar de cima, muito depois que uma criança morreu. Sou o anjo no alto da escada de onde alguém acaba de rolar. Sou todos os que chegam quando ninguém suspeita: saem de trás das portas, das entrelinhas, do desvão.

Eu sou o narrador e não preciso de platéia. Sou o espreitador e não preciso olhar pra frente. Vago pelos corredores e subo nos telhados, entro nos quartos, desço as escadas, limpo um canto de jardim - mas preservo o enigma.


(LUFT, Lya. O Ponto Cego. Ed Mandarim)

[Há um peça baseada no livro em cartaz, procurem saber - deixo a dica]

Amar a língua





Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo.

Às vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado. Às vezes se assusta com o imprevisível de uma frase. Eu gosto de manejá-la – como gostava de estar montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às vezes a galope.

Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos. E este desejo todos os que escrevem têm. Um Camões e outros iguais não bastaram para nos dar para sempre uma herança da língua já feita. Todos nós que escrevemos estamos fazendo do túmulo do pensamento alguma coisa que lhe dê vida.

Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do encantamento de lidar com uma língua que não foi aprofundada. O que recebi de herança não me chega.

Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me perguntassem a que língua eu queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso e belo. Mas como não nasci muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro para mim que eu queria mesmo era escrever em português. Eu até queria não ter aprendido outras línguas: só para que a minha abordagem do português fosse virgem e límpida.

(CLARICE LISPECTOR)

Como eu gostaria de ter sido vizinha de Machado...



Leiam A Causa Secreta, Teoria do Medalhão, Missa do Galo, A Desejada das Gentes, Uns Braços e outros contos de Machado. É muuuuito bom!



"Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento.
Olhou assombrado, mordendo os beiços.
Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa"

http://machadodeassis-memorialdobruxo.blogspot.com/2009/11/casa-do-cosme-velho-1.html

Redescobrir





Entre sótãos e porões segue o rio do meio. Não interrompe seu curso quando dormimos ou comemos, quando amamos ou nos frustramos, quando executamos projetos ou achamos que nossa força acabou. Na margem, garças distraídas. Inesperadamente uma delas joga-se no que parece o mergulho definitivo, mas voltará depois de varar o escuro, bico apontado para um sol que já não cega mais. Uma torrente vara a nossa casa: demora-se no cotidiano, dispara nas euforias, arrasta destroços ou empurra esperanças, às vezes por gargantas noturnas. Mas há de emergir – com ímpetos de um parto – numa explosão de claridade. Isso, somos. (Lya Luft)

Amo este livro de Clarice!




“Eu medito sem palavras e sobre o nada. O que me atrapalha a vida é escrever:

E - e não esquecer que a estrutura do átomo não é vista mas sabe-se dela. Sei de muita coisa que não vi. E vós também. Não se pode dar uma prova de existência do que é mais verdadeiro, o jeito é acreditar: acreditar chorando.

Esta história acontece em estado de emergência e de calamidade pública. Trata-se de um livro inacabado porque lhe falta a resposta. Resposta esta que espero que alguém no mundo ma dê. Vós? É uma história em tecnicolor para ter algum luxo, por Deus, que eu também preciso. Amém para nós todos.”

Pedro Nava

Pedro Nava


Visitem o site: http://pedronava.clientes.tecnopop.com.br/processo_criativo.php





"Todo mundo tem sua Madeleine, num cheiro, num gosto, numa cor, numa releitura - na minha vidraça iluminada de repente! - e cada um foi um pouco furtado pelo petit Marcel porque ele é quem deu forma poética decisiva e lancinante a esse sistema de recuperação do tempo. Essa retomada, a percepção desse processo de utilização da lembrança (até então inerte como a Bela Adormecida no Bosque do inconsciente) tem algo da violência e da subitaneidade de uma explosão, mas é justamente o seu contrário, porque concentra por precipitação e suscita crioscopicamente o passado diluído - doravante irresgatável e incorruptível. Cheiro de moringa nova, gosto de sua água, apito de fábrica cortando as madrugadas irremediáveis. Perfume de sumo de laranja no frio ácido das noites de junho. Escalas de piano ouvidas ao sol desolado das ruas desertas. Umas imagens puxam as outras e cada sucesso entregue assim devolve tempo e espaço comprimidos e expande, em quem evoca essas dimensões, revivescências povoadas do esquecido pronto para renascer." Baú de ossos, p. 291/292
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