segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O Ponto Cego - Lya Luft





História de Mãe e de Menino


'Mãe! Chamaremos agoniados."
Reunião de família, 1982

Eu que invento e desinvento, eu que manejo os cordéis, eu decidi parar de crescer. Foi quando minha Mãe não procurou logo por mim naquele nosso jogo. Dessa vez ela não entrou na brincadeira: não se interessava mais.

Isso foi antes de recebermos a visita que faria saltar dos espaços brancos tudo o que lá se ocultava.

Minha Mãe foi-se cansando de mim, da nossa cumplicidade. Ou da vida que levava. Sabia que havia rumos a decidir e restava-lhe menos tempo para minhas constantes necessidades, pois eu a exigia muito - e ela se exigia o tempo todo.

Talvez ninguém seja culpado: meus cálculos podem ter dado errado, minhas manobras falharam, o devorado era o que devia ficar inteiro, e o sobrevivente foi aquele que deveria ter sido engolido.

Notando o desinteresse dela, disfarçado mas real, e do qual talvez nem ela se desse conta, pensei que se ficasse para sempre pequeno eu teria mais chances: o que resta a uma Mãe senão cuidar do seu Menino?

Além do mais, sendo adulto eu perderia a minha perspectiva, as possibilidades de inventar se afunilariam e se fechariam as portas daqueles corredores.

Eu não queria ser como meu Pai que pensa que tudo controla mas deixa escapar o essencial. Então tomei a minha decisão.

Meu corpo obedeceu quando eu o reprogramei; mas não como fora planejado. Parou, mas não de todo; e não se sustou direito. Em algum momento errei a fala, fugi do roteiro, botei fora o papel pensando que era indispensável. Estranhas mudanças começaram a acontecer em mim - essas que nem eu entendo mas sofro.

Cada dia sinto que fiquei alguns milímetros diferente. Um pouco maior? Menor ainda? A pele muda de textura, tudo me dói. Se, ao contrário do que projetei, eu continuar crescendo mas minha pele não esticar? Se ela rachar e se fender... se eu explodir?

O que vai ser de mim? Eu me pergunto isso todos os dias, uma porção de vezes. O que vai espirrar nas paredes, o que vai-se derramar no chão: a merda ou o sonho?

O tempo que rói e corrói precisa ser reinstaurado, quem conta histórias pode sobrepor muitas camadas de imaginário e real pois sabe que os limites são tênues, e poderosa a liberdade com todos os seus perigos.

(É isso que eu faço. Eu manejo as minhas criaturas, invento e desinvento, e faço acontecer.)

• • •

Esta é a história de um Menino e da Mãe do Menino: uma história de muita sombra. História de desvãos, do embaixo do debaixo, do secreto. Narração de olhares, de um olhar. História de invocações.

Na trama da minha vida, sei que a Mãe preferia o Menino, mas o Pai queria era a irmã do Menino, bem mais velha. Era ela o futuro, era o homem, herdeira da força, dos desejos e projetos, a futura diretora das empresas. Ela ia com o Pai, visitava com ele o escritório e as fábricas onde havia um capacete adaptado à sua delicada cabeça. A menina dos olhos do Pai, diziam.

Eu, Menino, nasci bem depois, enfezado e prematuro, de cabeça grande no corpo magro, muito sem graça.

O Pai parece perplexo:

O que é que a gente faz com esse Menino? - pergunta às vezes à minha Mãe.

Ou:

- Nunca sei direito o que fazer com ele. Tão diferente, tão esquisito.

- É o jeito dele, deixa a criança em paz, daqui a pouco ele se recupera e fica um homão feito você.

Sei que no silêncio ela pensava: Ou ficará sempre do jeito dele mesmo, alguém fora do padrão, alguém especial - o Menino de sua Mãe.

E me dizia que eu era especial para ela, o filho sonhado, desejado:

- Você foi o filho da minha maturidade, que eu tanto quis. Você foi a minha alegria renovada.

• • •

Algumas das coisas que vou contar aqui eu vi e vivi; de muitas suspeitei, apanhei soltas no ar, meu coração as escutava soprando nas frestas. Outras, ainda, as pessoas revelaram sem saber.

Sempre há quem se exponha àquele que finge não escutar nada atrás das portas e não enxergar muita coisa lá da sua perspectiva. Personagens arrastam-se de longe: nunca acabaram de ser narradas por isso não conseguem morrer, e querem que eu as convoque.

Não cessam; murmuram nas dobras da cortina; querem voltar, querem viver. Sabem que posso desatar os nós que as prendem e as soltar na sombra - como balões iluminados.

Eu simplesmente fui reunindo mentiras e testemunhos: pois o que passou e o que está por vir e o que jamais aconteceu, paira no ar como a voz do mar continua depois que o fundo de areia se transformou num perfumado capim, riachos e cavalos, e pessoas com seus destinos desde sempre escritos.

Mas a verdade que eu quero contar, essa que circula no meu sangue e transuda de minha pele, é a história de duas pessoas que foram engolidas pelo seu olhar: um olhar infinito e interminável, viajante certeiro.

Um olhar fatal.

E de um cavalo cor-de-mel cujas patas varavam a noite, e um dia levaram alguém para onde não tem o sim nem o nada.

No preto e no branco, esta é a narrativa de como tentei manipular o tempo e afinal ele armou para mim uma armadilha mais eficiente do que a minha malícia.

Se eu era o definido precário, minha Mãe era a força negada: trazia entalada na garganta a pedra de sua própria anulação. Meu Pai tinha direito ao espaço: o melhor lugar à mesa, a maior poltrona na sala, a força e a ordenação.

As pessoas o temiam; eu também. Minha Mãe, por alguma razão nebulosa, sempre se submetia. Era mais inteligente do que ele, mais perspicaz, mais agradável, muito mais estimada. Porém sempre se esforçava por falar menos que ele nas reuniões e visitas: procurava a indefinição. Quando os dois discutiam, minha Mãe cedia: olhava para o lado, amaciava a voz, procurava as palavras que não o irritassem. Mesmo podendo vencer ela queria perder. Perder era o seu conforto. Outras vezes, calava: olhava um ponto longe e ali se interrogava.

(Um dia ela iria transbordar das beiras de si mesma, e eu teria preferido não estar presente.)

Embora sendo uma rainha, minha Mãe se curvava. Medo de ficar sozinha com este filho desenquadrado, medo de tomar decisões quanto ao seu destino - muito mais difíceis do que as que tomava no trabalho? Que anistia minha Mãe precisava se dar para viver inteira?

Comentando suas vitórias nos negócios meu Pai só dizia:

- Eu decidi.

Eram de minha Mãe as empresas, herança de seu pai, e sendo filha única era realmente a dona. Mas o mando era do marido, eram dele a voz poderosa, o passo determinado, o aparente poder.

Algumas vezes quando traziam papéis para trabalhar em casa, ele brincava chamando-a de "Senhora diretora", ou "Minha linda patroa". E inclinava-se para ver alguma coisa no computador pequeno que ela abria sobre a mesa de jantar. Um casal feliz?

Um casal com segredo e descompasso. Um par sem alegria.

Não era muito bonita a minha Mãe, grande e tranqüila por fora. Tudo nela era aquela mirada cinzenta e distraída. Quando olhava um ponto qualquer sem nada ver, eu queria embarcar também - mas não havia espaço. Isso me dava muita angústia e amor.

Quem sabe ela se questionava: Minha dívida é tão grande assim? Quanto terei de pagar - quanto realmente desejo pagar?

Depois o seu olhar voltava para mim, me chamava, ria e brincava - e era o paraíso. Os olhos de minha Mãe eram o meu paraíso, e foram a sua perdição.

Para sempre sete anos - esse número é o mais bonito: são sete os patamares, sete os pecados e sete os mares, sete a conta do mentiroso, gatos dourados têm sete vidas, bela é a lua sobre o campo quando a morte começa a desdobrar as asas.

Meu Pai precisava controlar tudo e todos; sobretudo essa que era a sua mulher. "Minha mulher", dizia em voz firme, falando dela ou quando a apresentava. Dizia:

"Minha mulher não faz isso", "minha mulher não freqüenta esses lugares", "isso é coisa de minha mulher".

Mas a posse o mantinha preso. Sendo o forte, na propriedade estava a sua fraqueza.

Só depois que tudo aconteceu, e que esta história foi desenrolada até quase o final, compreendi que sua insegurança o fazia agir assim; por medo queria conformar as coisas todas segundo sua vontade.

(Meu Pai também carregava a sua dor.)

Quando estavam separados, telefonava a toda hora para minha Mãe como se quisesse verificar que a ordem de sua vida não fora infringida. Quando estavam juntos, não tirava dela o seu único olho azul, conferindo: era tudo ainda como sempre, ela não se desviara dele, da sua vontade e da sua determinação?

Se minha Mãe lia quieta num canto ou simplesmente ficava sentada sem fazer nada, observava-a calado e sombrio como se quisesse analisar cada um de seus pensamentos.

Ela se queixava para minha Avó, que nesse tempo ainda não estava muito doida:

- Não estou agüentando mais. Ele nega mas quer me controlar, se pudesse comandava meu pensamento. Até no trabalho me vigia com aquele seu olho. Não consigo mais respirar!

Minha Avó pousou na filha o olhar crítico:

- Você perdeu sua chance aquela vez. Aí ainda podia mudar a sua vida. Mas agora, com dois filhos, e já perto da meia-idade...

Olhou depressa para mim para ver se eu estava prestando atenção, mas eu fingia montar um brinquedo. Sabia que "aquela vez" era um assunto proibido, uma porta perigosa.

Minha Mãe suspirou:

- Não sei, não sei mais nada. - Ergueu os ombros e deixou cair, um gesto de desesperança. - Talvez você tenha razão: trocar o que tenho pelo duvidoso?

• • •

Eu vi, atrás das portas e do alto das escadas, eu vi: quando havia mais gente, sempre que minha Mãe ficava alegre e falava alto ou alguém a elogiava, ele a abraçava, beijava na boca. Outros casais ali não faziam isso; ele insistia. Minha Mãe se desviava sorrindo, tentava fazer parar, acho que encabulava. Vendo-se contrariado ele ainda a puxava para que sentasse em seu colo, e eu, atento atrás da porta quando todos pensavam que dormia no quarto, eu via, via no rosto dela a expressão de repulsa e de sufocamento.

Meu Pai a iria perder por prendê-la tanto. Do meu ponto de vista pude enxergar isso e muito mais. Pois há esse lugar em que não se vê o trivial nem o concreto, mas o atrás e o avesso.

(Sabendo que eu também a perderia, nessa hora senti pavor.)

• • •

Descansa em paz Letícia, filha amada, estava escrito numa pedra do cemitério onde fui outro dia com minha Mãe.

Eu sei que letícia significa alegria, foi minha irmã quem me disse, e disse:

- Ela era a filha querida do Papai, nasceu antes de você, antes de mim, mas morreu. Ficamos nós dois, eu e você, monstrinho. Melhor pra mim que ela morreu, agora eu sou a preferida! - acrescentou já se afastando, e sua risada cortou o ar como uma fina fria faca.

- Você não tem pena dela por ter morrido? - perguntei. Ela se deteve, impaciente:

- Eu nem lembro dela direito, era pequena demais. Morreu, acabou, o que é que tem?

E saiu, plena de sua vitória e de sua afirmação.

Ser a predileta do Pai era absoluto, um valor absoluto em nossa casa. Ser o predileto da Mãe não importava tanto: embora minha Mãe fosse a dona, era menos que meu Pai.

• • •

Ela estava muito calada durante o trajeto, e pareceu triste quando botou flores no vaso de pedra. Então ali estava enterrada a alegria dela e de meu Pai.

Perguntei:

- Você gostava muito dela?

Ela me fitou surpresa mas sorriu:

- Claro meu filho, era minha filha, como sua irmã, como você. Morreu tão menina, tão de repente.

Fora obra de um tumor na cabeça, um veloz devorador. Meu Pai não saía do lado dela no hospital, e quando ela morreu ele gritava tanto que se ouvia pelos corredores. As Tias me contaram tudo, com elas era fácil descobrir coisas: bastava destapar o fosso com alguma pergunta inocente, e despejavam relatos da vida dessa família na qual ocupavam um lugar tão reduzido. Mas era o lugar que tinham.

Como eu, sendo desimportantes podiam observar melhor. Minha Mãe, mesmo tendo perdido a filha de seu ventre, levara meses, anos, para ajudar o marido a se recuperar. Ele se agarrara desesperadamente à filha que sobrara.

Eu só ia nascer bem depois disso, estrangeiro e tardio: o lugar especial fora ocupado.

Quando penso no sofrimento dele com aquela morte quase tenho pena, e chego a prometer a mim mesmo nunca mais escrever "letícia" no espelho do corredor, nem murmurar entredentes "alegria, alegria" quando ele passa por mim.

Mas não sou bom cumpridor do que prometo.

• • •

Não há na casa toda um só retrato dessa menina morta. Dizem que meu Pai não suportaria a dor. Queimou, rasgou, destruiu todos os sinais dela em torno quando ela morreu. Nem um vestidinho sobrou, nem um sapato. Ele nunca mais pronunciou seu nome. A palavra alegria foi banida de nossa casa.

Mas minha Mãe guarda coisas da filha escondidas no fundo de gavetas: tristes amarelados objetos dessa que não a deixaram amar direito. Às vezes quando ninguém vê eu vou até lá pego entre esses restos uma fotografia, e fico olhando.

Quero conhecer essa menina, quero conversar com a alegria que meus pais perderam. Sozinho no escuro consigo chamar quem eu quero: mas essa aí não vem com facilidade.

A foto mostra uma criança sentada num banquinho, livro de figuras aberto no colo. Mas não olha o livro: olha para nós que a contemplaríamos no futuro, e ri. Olhos claros, no cabelo uma fita como uma borboleta assustada.

Parece um anjo no alto de uma escada, cabelo crespo igual ao meu. Mas o meu sempre mandam cortar curtinho: meu Pai não quer saber de filho com cara de menina, além do mais essa semelhança o assusta. Essa, eu sei, é uma das coisas perigosas da minha vida.

Como se sentirá quem a gerou e pariu, cuidou dela e amamentou, e criou e amou no espaço que sobrava, na estreita beira que meu Pai lhe permitia - e de repente a perdeu para a coisa Inominável?

Em que medida meu Pai, o dono da criança, teria acusado a mulher por essa perda? Com que impossibilidade de perdão ela mesma se culpava?

Sempre que vou para frente de um espelho, é a outra criança que me encara.

(É assim o tempo: devora tudo pelas beiradinhas, roendo, corroendo, recortando e consumindo. E nada nem ninguém lhe escapará, a não ser que faça dele seu bicho de estimação.)

• • •

Quando meus pais me olham com seus três olhos, dois cinzentos e um azul, quem sabe também vêem a sua letícia morta e por isso não sabem como me tratar? Sou bem parecido com ela, pedacinhos do rosto e os olhos continuam em mim. Isso muito incomoda meu Pai, que queria a outra, a enterrada, a primeira. Talvez enterneça minha Mãe e por isso ela goste de mim do jeito que sou, pouco e diferente. Nem ao menos sou bonito, sei que não sou porque a gente escuta os adultos falarem.

- Estranho, ele. Não tem a beleza da outra, embora seja muito parecido - alguém comentou.

- Mas é simpático, ele tem carisma e é muito inteligente! - disse minha Mãe, parecendo orgulhosa.

• • •

Ele sempre quis uma filha. Quando todo homem quer menino, ele queria filha mulher. E vendo a criança pela primeira vez fez a sua escolha. Não importava quantos bebês viessem depois, essa era dele. Talvez quisesse inventar para si uma criatura.

Decretou:

- Vai se chamar Letícia. Vai ser a alegria de minha vida.

Minha Mãe pensara em outros nomes, mas na hora de escolher nem foi consultada.

Quando algum tempo depois outra menina nasceu ele não lhe deu importância. Seu coração feroz estava ocupado. Porém quando a morte lhe roubou a preferida, recuperando-se ele se voltou para a que tinha sobrado.

Talvez por ódio, para vingar-se da morte, talvez por medo - ou por não saber o que fazer com o inútil amor em que agora se enredava como em panos soltos - mais uma vez meu Pai escolheu: É essa, essa aí, agora ela vai desempenhar esse papel.

E amou a substituta com um entranhado amor que excluía até mesmo minha Mãe. Nela tinha sua esperança, nela plantava seus sonhos, fechava-se com ela num círculo de predileção.

Nossa casa girava em torno de minha irmã: suas qualidades, sua força, seu futuro - que ele já estava traçando.

Minha Mãe pedia:

- Por amor de Deus, deixa essa menina em paz, ela ainda é muito nova para falar em futuro e em profissão. Não é hora de tomar decisões desse tipo.

Meu Pai desdenhava:

- Está quase entrando na Faculdade, o que você quer?

E os dois riam dela, entendiam-se como se fossem irmãos, o Pai e sua menina.

Eu nem entrava em jogo nenhum: eu era o sapo na beira do poço. Nisso residia a minha liberdade?

Minha Mãe então ficava calada. E voltava-se para mim, nascido quando o amor começava a endurecer dentro dela como um fruto petrificado que então se abriu - e ainda havia mel no fundo. Seu amor se derramou sobre mim, forte e grudento, e doce também. Era tudo o que eu tinha, eu que não possuía nada.

(Mas não fui uma escolha: fui o que sobrou depois do nada.)

Em família, sem dizer nem combinar a gente determina quem são os maus, quem são os bons. Prende neles os rótulos e todo mundo acredita: eles também.

Minha Mãe tinha de ser a boa. Aquele era o seu papel. Meu Pai era dos maus. Ele manejava o poder. Minha irmã era uma invenção dele, a personagem. Minha Avó era a doidinha. As Tias contavam menos do que os outros. E não havia mais ninguém.

Pois uma menininha morta muitos anos atrás representava o fracasso e a perda. Por isso meu Pai parecia havê-la esquecido. Diziam que nem uma vez nesses tantos anos foi ao cemitério.

Assim pensava enganar a morte.

Todo mundo recebe o seu papel ao nascer, e antes de nascer. Desempenhá-lo bem é uma das muitas artes da vida. É preciso compartimentar: aqui ser feliz, ali desgraçado; com essa pessoa ser eu, com a outra ser inventado; aqui vestir um traje, ali virá-lo do avesso. Compartimentar para perdurar.

(Eu não era nem bom nem mau: eu estava de fora.)

• • •

Eu sou o que deixaram sob o tapete, o que à noite se esgueira pelos corredores chorando. Sou o riso no andar de cima muito depois que uma criança morreu. Sou o anjo no alto da escada de onde alguém acaba de rolar. Sou todos os que chegam quando ninguém suspeita: saem de trás das portas, das entrelinhas, do desvão.

As pessoas não descobrem, apenas desconfiam. Viram a cabeça um pouco, lançam um olhar disfarçado, mexem-se na cadeira. Ou continuam dormindo, boca entreaberta e corpo encolhido sob os lençóis. Algumas, entrelaçadas pernas e braços. Eu gosto disso, de me infiltrar sem ser esperado, sem ser visto.

Eu sempre estive lá: sei muito a respeito de todos eles, sei quase tudo. Menino, anão, gnomo: um ouvido, uma grande orelha, um olho enorme de pálpebra semicerrada como quem não quer nada, como quem nem quer ver. Mas pela visão o mundo entra e sai, e se armam todas as cenas, as narradas e as reprimidas: essas, florescerão.

Não há saída, não há como escapar de quem assim contempla e controla e trama. Isso devia assegurar a minha vitória.

• • •

A Mãe que me seguia com seu amor e me perseguia com seus cuidados, sempre que tinha tempo jogava comigo o jogo de esconder. Aqueles eram os meus momentos mais felizes: ficava provado o quanto ela precisava de mim. Para me ocultar, no sítio havia o armário embaixo da escada, onde se guardavam as coisas inúteis. Esse era meu lugar. Só uma aberturinha no alto, quase-escuro. Sempre gostei da sombra: nela sou livre.

Onde não há nenhum canto bom para me enfiar, levanto em torno de mim paredes de ar. Fico parado no meio da sala, quietinho, fecho os olhos com força, quase nem respiro. Chamo: "Pronto!" e minha Mãe anda ao redor fingindo não me ver. Ela me procura, procura por mim preocupada, onde está o meu Menino, onde está? De repente me agarra, me abraça com força e a gente dá risada.

Para mim teria bastado. Mas não sei se bastava para ela.

A Mãe que me validava ainda não se descobrira. A Mãe que confirmava o lugar de todos nós não sabia de si. Eu era um menino inventado por sua Mãe?

De vez em quando, distraída, calculando o montante de sua dívida e a possibilidade de não mais pagar, ela errava no jogo. Mais tarde, levada na maré dos olhares de quem mesmo não estando a seu lado estava dentro dela - mais que filho - desistiria inteiramente de mim?

Sem saber, ou para me ajudar, minha Mãe me revelou caminhos e artimanhas.

Perguntei:

- Mãe, onde estão essas pessoas, onde acontecem essas histórias que você me conta?

- Sempre que não entendo um fato ou ele me assusta, invento histórias a respeito dele, e são as que lhe conto.

- Esse cavalo cor-de-mel de que você às vezes fala, esse cavalo existe?

- Tudo existe. Tudo o que a gente inventa existe, se a gente quer, existe lá no seu mundo, do seu jeito.

E ainda disse:

- Podemos inventar qualquer coisa que nos dê alegria, que nos ajude a escapar. Um amigo, um cavalo, um caminho.

Eu quis perguntar do que ela escaparia e para onde, mas tive medo da resposta e não indaguei. Sempre foi mais prudente inventar perguntas do que escutar respostas.

Dizendo essas frases minha Mãe tinha um estranho olhar, como se soubesse muito bem o que queria: encontrar a hora e o motivo de dizer não e sim.

Ela podia buscar consolo em suas fantasias. Eu tinha mais que isso: podia fazer o cavalo existir de verdade. Bastava eu o criar para mim, tirar assim do nada, do vento, como quem desenha no papel: ele começava a nascer. Erguia a curva da cabeça, espiava com o grande olho, esticava o flanco, mexia as patas fatais.

As histórias de minha Mãe eram o meu conforto. Depois que ela me perdeu, o cavalo cor-de-mel seria a minha salvação.

Tudo isso é um jogo. Um jogo muito perigoso.

(Por isso um dia um visitante montou no cavalo do tempo e galopou - e ficou desaparecido.)

• • •

Não vou crescer mais que isso. Não quero ser adulto como esses com suas vidas regradas, podadas, abortadas. Não quero ter de viver só no que se delimitou como sendo o real.

Não quero perder as minhas asas, por isso não vou crescer - apenas me desenrolar. Assim me infiltro em todas as fendas. Assim caibo em toda parte e ninguém desconfia de mim. Continuam pensando que criança é inocente para sempre amém.

Essa é a minha grande vantagem.

Eu sou o narrador, e não preciso de platéia. Sou o espreitador, e não preciso olhar de frente. Vago pelos corredores e subo nos telhados, entro nos quartos, desço as escadas, limpo um canto de jardim - mas preservo o enigma.

Esse é o meu divertimento. Eu gosto do embaixo, do debaixo, do escuro. Meu lugar é onde se represa o tempo e a minha vontade se exerce.

Ali todos estão para sempre, e me olham e se olham, partes da mesma interminável história de cada pessoa, na qual importa o sonho e a vigília é nada.

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