segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

LYA LUFT - O RIO DO MEIO (CAPÍTULO 2)




Eu falo de infância e madureza

"Eu era uma esteta, não uma atleta,
e meu único desejo era
o de perambular em êxtase."

C. P. Estés

Era uma vez uma menina que não sabia qual o seu lugar no mundo. Ser uma mulher prendada era o que ensinavam às suas primas e amigas; ela queria destapar o poço que rumorejava dentro de si - e não tinha com quem falar sobre isso.

Nunca seria uma dessas meninas que bordavam lindamente, aprendiam a cozinhar e tocavam piano muito melhor do que ela jamais conseguiria. A música abria-lhe os caminhos do maravilhoso, mas os dedos eram indisciplinados, parecia desprovida de capacidades que qualquer outra menina manejava sem esforço.

Com a melhor das intenções, tentavam adestrá-la: ela, porém, teimava em mirar-se no inenarrável, e muitas vezes não sabiam o que fazer com uma criança assim.

Tinha momentos de euforia, divertia-se imensamente com algum detalhe sem importância, mas também pressentia que tudo era efêmero. Nas horas felizes, de repente sentia a punhalada: tudo isso ia acabar. Um dia, logo ou no futuro, ia acabar. Todos nós íamos acabar - pior ainda - no negrume da morte.

Não sabia o que na madureza aprenderia: que todas as coisas quando acabam são substituídas por outras; que a vida não se reduz mas cresce, e é em tudo um milagre.

• • •

A palavra saboreada a sós: nem com a pessoa mais amada conseguia partilhar inteiramente essa sensualidade da alma, essa beleza que habitava nela ao mastigar no secreto de sua boca a palavra 'açucena', encontrada no livro da escola de manhã.

Correu para a mãe e disse:

- Mãe, eu queria tanto me chamar Açucena!

Os adultos puseram-se a rir, mas ela continuou nesse amoroso jogo com palavras, frases, poemas inteiros, com imagens e invenções. Tinha aprendido: havia felicidades que era impossível dividir.

• • •

Foi uma aluna medíocre. A escola parecia uma prisão da qual espiava o céu pensando em como seria bom estar em casa lendo, com chuva na vidraça.

Em matemática era péssima: que lhe interessava quantos metros de trilhos teriam de ser colocados, em quantas horas, para que o trem fosse pontual? Queria era saber da paisagem, dos destinos que seguiam nos vagões, dos rostos nas janelas. Mesmo adulta, nunca teve certeza de que dois mais dois fossem sempre quatro. Por que não quatro e meio de vez em quando? Na vida, pelo menos, sempre lhe pareceria assim.

Era ruim também em geografia: não conseguia decorar qual o rio mais longo do mundo nem a sua extensão, mas imaginava as águas chapinhando nas margens e a voz dos pescadores chamando uns aos outros quando tinham fisgado um peixe maior.

Em ciências, dados de experimentações não lhe diziam nada. Intrigavam-na os bichos e as plantas, as nervuras da asa de uma abelha: tudo adquiria significado se trouxesse beleza.

Cansava-se nas aulas de gramática: linguagem era sortilégio, e importavam - mais do que as linhas - os caminhos da fantasia.

Por tudo isso, era um fracasso permanente. Não esqueceria os dias em que o pai a chamava ao escritório, onde ouvia as palavras infalíveis:

- Estou profundamente decepcionado com você.

Aquele deus, amado acima de tudo, a encarava como se fosse uma ré. Mais ainda, doía-lhe reconhecer que não ia mudar nem fazer o pai entender que não era birra ou negligência: era falta de talento para ser melhor. Seus dons limitavam-se ao que lhe interessava: então, alçava vôo. No mais, arrastava-se sem alegria, sentindo-se irremediavelmente devedora.

Sobre isso, também, escrevo: sobre dívidas, e sobre aceitarmos que nos cobrem mais do que devemos.

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Por mais bem dada que fosse, para ela a aula era monótona. Pensava no que tinha lido na noite anterior sobre os jardins suspensos da Babilônia; imaginava gramados e palmeiras pendurados entre a terra e o céu.

Para sair do torpor, foi devagar empurrando a caixa de lápis e canetas até à beira da mesa; mais um pouco, esqueceu os jardins aéreos e começou a achar graça. A caixa caiu e esparramou no chão o seu inútil conteúdo; vários dos meninos se jogaram de quatro entre as carteiras para reunir tudo outra vez.

Tumulto na sala, risos. O rosto do professor, vermelho de indignação, indicava a porta e o caminho para a sala do diretor, já tão familiar.

Queriam que fosse obediente e atenta, que não caísse na risada fora de hora, que não devaneasse durante as aulas e finalmente domasse a letra que cambaleava em garranchos pela folha de papel.

Mas ela, infantil ainda, roendo a ponta do lápis, imaginava se os morros que rodeavam a pequena cidade não seriam povoados de duendes. Sonhava que um amado viria, no futuro não muito remoto, libertá-la do destino de ser incompetente e inadaptada e de tão raramente poder fazer o que queria.

Afinal, o que queria? perguntavam os adultos. Ler e sonhar sem nenhuma voz impaciente chamando para cumprir tarefas desinteressantes. Depois, que lhe aplacassem as curiosidades e lhe dessem algo para derrotar os medos.

Mas isso era restrito ao cobiçado reino adulto, onde mulheres usavam jóias, bebiam e fumavam, enquanto os homens entretidos com questões graves pareciam tão seguros de si como se já tivessem resolvido as estranhezas todas: viver, tentar compreender, morrer.

Nenhum deles parecia conhecer as inquietações que faziam da insônia a sua visitante regular.

• • •

Por não ser boazinha, explicaram, pela rebeldia contra tudo que achavam bom para ela, no fim da infância foi mandada para um internato onde trocou o quarto de criança mimada por um dormitório que lhe parecia imenso, dividido em celas por biombos de pano branco, baú de roupas debaixo da cama - tudo impessoal. A certeza do abandono vinha devorar sua alma à noite, e não a deixava de dia, quando estudava, comia, vivia no meio de dezenas de outras meninas.

Numa das longas mesas do refeitório sentavam-na em frente da diretora de olhos como vidro azul.

- A princesa não acha nossa comida boa o bastante - dizia para todas ouvirem. A menina engolia lágrimas, raiva e solidão junto com as refeições preparadas sem afeto.

À tardinha, quando as internas se reuniam no pátio da escola, onde havia uma pequena elevação cheia de árvores e se viam ao longe morros azuis parecidos com os que rodeavam sua cidade, ela ficava quieta, isolada, imaginando como poderia fugir dali.

- Se a gente caminhasse sempre naquela direção, em quantas horas chegaria em minha casa? - perguntou, inocentemente, a uma colega mais velha, que não soube responder, mas tentou confortá-la:

- Daqui a pouco você se acostuma, todo mundo no começo tem saudade.

Mas ela não queria se integrar: precisava, talvez, salvar-se aceitando o que lhe acontecera.

"Se me castigaram tanto, e são pessoas boas, e me amam como dizem, com certeza devo ser muito má." Era o seu jeito de tentar se consolar.

Naquele breve tempo comeu a cada segundo o amargo pão do exílio. Não adiantava saber que pais botavam filhas naquele internato porque as amavam, se preocupavam com elas, porque as queriam bem treinadas para serem boas mães e mulheres no futuro: fora expulsa do seu paraíso.

Meses depois, condoídos, resolveram tirá-la de lá. Nunca esqueceu a sensação de voltar para casa: num trem, cabeça no colo do pai, levada de volta ao céu - embora não o tivesse merecido. Mas a rejeição instalara-se nela: essa falha no chão de seus passos nunca mais se fechou.

Trinta anos mais tarde voltou a esse lugar, agora uma escola moderna. No instante em que pisou no vestíbulo de gastos losangos pretos e brancos teve de apoiar-se na parede para não desmaiar: velhos tormentos a ameaçavam.

Também disso eu falo: do desencontro quando o amor dos adultos deixa o mundo de uma criança em irreparável desordem.




O texto acima foi extraído do livro O Rio do Meio Editora Mandarim, São Paulo, 1996.


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