quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Ex more






“Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!"

(Álvaro de campos)
“ - Amor será dar de presente um ao outro a própria solidão? Pois é a última coisa que se pode dar de si(...) sei que meu caminho chegou ao fim: quer dizer que cheguei à porta de um começo” (Clarice Lispector)


I

E ela que pensara ter a vida inteira o próprio nome,
sentia o peso do incômodo presente: nome + sobrenome = parentes

Aquela paz inquietante lhe era verossímil.
– não autêntica.
Tirava-lhe os pulmões, as cordas vocais e as pernas:
Precisava da fala autônoma, de correr e de inalar um mais-que-contentamento.

Não pretendia a loucura,
nem muita excitação

Contudo lhe era inviável a letargia tépida em que se metera.

Inadmissível se ausentar da alegria - e da liberdade

Identificara-se e se revoltara com o que lera de Pessoa na noite anterior: 'é este estar entre, /Este quase, Este poder ser que...'

Ainda assim se sentia presa à saudade das reuniões de família enfadonhas
- nelas residia sua única forma de se aquecer.

Ela se aconchegara no marasmo.


II

Fernanda queria mesmo
fazer umas contas
de menos
de mais
de multiplicar
de dividir
para alcançar o tal equilíbrio que as avós e tias tanto anunciavam em sua infância
(eram elas submissas felizes)

Difícil - o cotidiano era muito à l'eau de rose e a vida não vinha com dispositivo avançar/recuar

Não dava pra passar a borracha nas rugas
não dava pra remover as rusgas
não dava pra desfocar o exato-latente momento das mágoas.

Num súbito consentimento de impotência, lamentava:

"Sim e sim: possível fotografar sutilezas de felicidade;
impossível prendê-las em imagem"

(Retina devia ficar na boca: a alegria seria devorada e guardada
no corpo,
no ventre,
como quem tem uma prisão)

...E mais.

"Tudo é tão...
e não só, mas também
e apesar
e até que
e mas
e ora

...E pois.
e tal qual,
e apesar de
e que

...E quanto.
Tão conforme,
tão se bem que."


E simplesmente assim como.


III

Entretanto Fernanda se garantia na insistência:

“A vida borra
distorce
gira
recorta
parece que vai diminuindo aos poucos.”

“Mas ela intriga, hipnotiza, atrai e cativa:


filhos,
amores,
pôr do sol,
luar na praia do Leblon,
café expresso,
cheiro de livro novo,
olhares que se cruzam,
arroz com açafrão,
vidas que se entrelaçam,
abacaxi com canela,
novos amigos,
amigos de sempre,
sorvete de chocolate,
aconchego de filho,
pão quentinho,
gargalhadas,
suco de melancia,
a paz de estar só e bem,
- ou a alegria de estar acompanhado -,
pizza sem culpa,
horas em uma biblioteca,
cheesecake,
cheiro de chuva...


e seguir a vida.
Apalpar a vida.

Compreender.

Compartilhar:
fraqueza,
riso,
saudade,
alegria,
preguiça,
paixão,
receio,
conhecimento,
liberdade
e
paz.”

Sim e sim.

Trazer de volta para o corpo os pulmões, as cordas vocais e as pernas era o que de mais precioso poderia fazer.



Era sua esperança de branda euforia.

E equilíbrio

Rosane Gomes
http://imagemdasletras.blogspot.com/

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