quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

CRÔNICAS DE SOLIDÃO II







Benedito

A mão passa na aspereza. 
O verniz que se foi. Não. É a árvore que regressa.
(...)"
(Carlos D. de Andrade, "Indicações" - em A rosa do povo)

"Ele cresceu com os tempos/ 
Do respeito e dos mais crentes" (José / Piero – Vs. Nazareno de brito)



Palavras, palavras, palavras. Nada além de palavras. Aquele velho carecia: no café de um posto de gasolina, compulsivamente.


No seu delírio, todos pareciam camaradas.
Todos (com risadas de canto) eram atentos à contação de sua história pessoal - das dores e melancolia da vida inteira que preenchiam os as rugas e sulcos de seu rosto. Havia nele a urgência de contar, sim, como havia. Precisava do verbo para segurar o fio de vida que lhe restava.

A cada gole de café ou a cada frase, um sorriso sem retorno, um outro correspondido, alguns atirados ao ar. Ele precisava.

As roupas simplórias, o cheiro de asfalto, o rosto tenso - ele também fazia da loja de conveniência sua sala de análise. O balcão era o divã.

precisava precisava precisava

Seu barulho incomodava atendentes e consumidores. Se irritavam.
Era uma agonia...
O velho falava repetidas vezes: Você não sabe o que é andar na esteira por 9 minutos! É…! Não é mole não!

Você já fez esteira?

E contava sobre o remédio que poderia ter tomado duas vezes: Acho que tomei o da pressão duas vezes, tô tonto, café faz bem.

E falava da prima: minha prima, de segundo grau, fez a mesma coisa, menina!? E foi para no posto de saúde. Perigo, hein?

E falava do nada repetidíssimas vezes: éavida, éavida, éavida, éavida, éavida…

E falava pro vácuo:

A cada dia, quando voltava para casa, tirava o peso da carroça de consertos e o das angústias - contava a uma senhora com olhar de sai-daqui-que-eu-não-aturo-maluco.

Filhos, ausentes - dizia à balconista com olhar de ele-está-sujando-o-balcão.

A mulher, companheira de 40 anos, perdera para os mesmos médicos negligentes com que ele se tratava - confidenciava baixinho a um rapaz de olhar vou-dar-um-chega-pra-lá-no-mané

Ele era um solitário que optava por se distribuir na rua na esperança de pescar uma alma que fosse para compartilhar sua vida. Queria ouvidos, sorriso, conversa e não a esmola que uma enricada quase lhe ofereceu para se livrar do inoportuno barulho.

Sua vontade de dividir a vida era inconveniente.
Ele nem percebeu.
Terminou o café, comeu o biscoitinho grátis, achou graça da água oferecida num copinho de cachaça - Coisa de gente fina, né minha filha?

Não percebeu que o relato de sua vida sufocou o egoísmo dos convivas.

Ele saiu feliz - O café é caro, mas... gente fina! Acho que fiz amizade com aquela…
Ele descansou da tristeza.

Para os que ficaram - conforto e consolo do silêncio.



Rosane Gomes
http://imagemdasletras.blogspot.com/

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