terça-feira, 1 de março de 2011

Adélia - entrevista



...”essa [minha] insistência no cotidiano é porque a gente só tem ele.
É muito difícil a gente se dar conta de que todos nós, artistas ou não, pessoas pobres ou ricas, nobres ou plebéias só temos o cotidiano e o cotidiano de todo mundo é absolutamente ordinário - ele não é extraordinário.

O cotidiano da rainha da Inglaterra deve ser tão insuportável como o de uma lavadeira(…) então, a cada um de nos cabe a vida comum (…) e eu tenho absoluta convicção de que é atrás e é através do cotidiano que se revelam a metafísica, a beleza.

A gente fala assim : " que vida bacana a santa Joana D'arc" (…) a gente quer uma vida heróica, nos todos aspiramos a uma vida heróica; ‘Deus me livre dessa vidinha minha, uma vidinha sem nenhum encanto’.

Mas essas vidas ficaram encantadoras depois que passaram. Já pensou Joana d'arc? que tristeza? presa, sujeita à morte, aquela roupa horrorosa, na poeira ?
E Eintein?( ‘ah o emprego que nao sai?’) fazendo cartinha pra arrumar emprego? Quem já leu biografia o dele sabe.

O cotidiano é na poeira e para todos nós.

E o mais bacana que tem é a gente tirar o nosso heróico, o nosso heroísmo deste cotidiano.

Tem um livro fundante pra nós , que se chama A Negação da Morte de Ernest Becker - ele fala: ‘O nosso heroísmo é aqui ó.’ É no pequenininho e naquela paciência impossível de ter que eu tenho que ter.

E você diz ' Deus me livre lidar com esse doente , com isso, com aquilo…eu queria viver como… e você bota um personagem bem famoso.

O personagem não existe! Não existe!

Caiamos na real… bonita é a nossa vida, a nossa vida é linda, mas é mesmo, é linda(…)

Só a morte dá um perfil pra nós - depois que a pessoa morre, (aquela pessoa anônima, de vida mais ordinária) ganha um perfil, um retrato - e às vezes heróico, porque viveu a vida que lhe foi dada.
Então o cotidiano pra mim é o grande tesouro…

Ortega y Gasset falou : admirar-se daquilo que é natural é que é o bacana... Admirar-se da água aqui ó….. quem se admira? ‘H2O’… conheço isso demais...

...Água, abacaxi, feijão, quem entende feijão? Alguém entende? Só no prato.

Mas a alma criadora , sensível, um belo dia se admira desse ser extraordinário que ninguém entende…

A vida é extraordinária.

Não sei que falou isso: admirar-se de um bezerro de duas cabeças qualquer débil se admira…
Mas admirar-se do que é natural… só quem tá cheio de Espirito Santo.

E O mundo é magnífico. Magnífico
É bom demais estar vivo. É bom demais
E eu quero esta vida, essa vidinha - essa que é a boa, com as chaturinhas dela, as coisas difíceis…
…e é maravilhoso, porque, quando você cai nesse lugar aí, você aceita sua vida, então você não sai à procura de heroísmos extraordinários.

Nós todos queremos no nosso currículo um ato heróico...
Às vezes ato mais heróico é o mais anônimo, mais silencioso que só Deus sabe -
a gente não conta nem pra pessoa mais íntima nossa.
Isso que é a maravilha, né?
Isso é uma coisa valiosa demais...


A vida humana.


Trancrição de entrevista concedida por Adélia Prado no programa "sempre um papo" da TV Senado. -

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...