sexta-feira, 26 de junho de 2015

Adélia Prado 2







...)
"Quando eu falo de poesia, não é apenas da poesia que,
eventualmente, nem sempre nós encontramos nos poemas.
Falo do fenômeno poético de natureza epifânica, reveladora,
do que confere a uma obra de arte o estatuto de obra de arte;  pode ser música, pode ser escultura, pintura,
teatro, dança, cinema e literatura que é onde eu me coloco.
Tudo isso que foi nomeado, tudo aquilo que eu chamo de arte
se justifica pela poesia que ela contém. Se não tiver poesia não é cinema, não
é teatro, não é pintura, não é literatura. Não tendo, ela é tudo  menos obra de arte.
(...)
É muito estranho falar do ser das coisas, esse ser, ele é
inapreensível, eu não dou conta de pegar o ser de uma rosa, de um rio, de uma
paisagem ou de um rosto, mas quando a arte ela faz isso, ela apreende a coisa
mais alta que está atrás das coisas, ela nos revela, nos remete à beleza
suprema se nós estivermos despidos do orgulho, da razão e da lógica.
Então, para que esse fenômeno de revelação da arte possa
acontecer temos que estar desnudos de todo o orgulho, a razão tem que abrir mão
desse poder, a lógica tem que abrir mão desse poder para que a obra seja
apreendida no único lugar para qual ela quer ir que é o centro da pessoa,
aquilo que nós chamamos, o sentimento, os nossos afetos.
Aquilo que nos constitui felizes ou infelizes, não é o que
nós sabemos, mas é o que nós sentimos.
Arte é para o sentimento, é para a sensibilidade, é para a
inteligência do coração e não para a nossa inteligência lógica.
(...)
A arte fala de absolutamente tudo porque qualquer coisa é a
casa da poesia. Ela não escolhe tema nem enredo, nem assunto. Ela pousa onde
lhe apraz e é esse o momento que é apreendido pelo poeta, pelo artista.
(...)
Agora nós podemos perguntar: “Por que a arte nos humaniza?”
Porque mostra não a aparência, mas nos induz por causa da
emoção que ela nos causa.
Ela nos induz à intimidade, à alma das coisas, à nossa
própria intimidade e é por isso que ela nos comove; porque mexe. Não em nossos
pensamentos, mas em nossos afetos, naquilo que nós sentimos – e toda obra me
oferece um espelho. A obra é um espelho. Ela faz com que eu me reconheça nela.
Se você diante de um livro diz: “como esse autor pôde tocar
nisso? Eu achava que só eu sentia isso, só eu sabia disso”. Aí é que está o
nosso equívoco, e aí mora a universalidade da obra verdadeira.

Qualquer obra feita na China, Japão, Canadá, no Brasil –
verdadeira – ela tem o dom de espelhar a humanidade, aquilo que nos é comum. E
nada mais comum em nós do que nosso desejo, do que nossos afetos.
Queremos ser felizes e temos medo, temos compaixão, temos
ódio, temos ira, temos bondade, todas as boas e más paixões que nos habitam. É
esse material que faz a obra de arte. Ela não é um pensamento filosófico. Ela
expressa aquilo que nós sentimos, aquilo que é humano e só por isso ela me
alimenta porque ela dá significação e sentido na minha vida.
Isso é muito interessante porque nós todos padecemos de uma
angústia imensa; uma das primeiras angústias humanas, que é a angústia do
tempo, da finitude, nós começamos e acabamos, somos finitos, nós passamos.
A obra de arte não sofre esse desgaste, ela está fora do
tempo.
Uma emoção muito profunda que você teve, uma paisagem muito
bela que você viu, qualquer coisa que te comoveu, comoveu e passou. Mas, quando
aquilo é apreendido num quadro ou numa poesia, qualquer forma de arte, essa
obra segura o tempo pra mim. Ela não apenas segura o tempo, mas ela tem uma
qualidade que nós perseguimos sempre, que é a unidade do nosso ser, a unidade
da nossa experiência, porque nós vivemos de maneira fragmentada.
Quantas coisas nós já fizemos hoje? Tudo fragmentado! Uma
hora é tomar café, uma hora é tomar banho, uma hora é se vestir… Tem fragmentos
de tempo e nós queremos uma coisa eterna, unidade, na unidade que dure, que
perdure e que não sofra essa solução de continuidade.
Então a coisa mais próxima disso que nós temos enquanto
estamos vivos é a arte.
Você contempla um quadro, escuta uma música, aquilo está
inteiro e porque está inteiro ele me dá sentido, me dá um eixo, me dá alegria.

A arte consola, conforta, é pão espiritual.
Há uma fome em nós que nenhuma prosperidade material, que nenhum
sucesso material pode saciar, você continua faminto, faminto de transcendência,
algo que me diga “você é mais que seu corpo, você é mais do que suas
necessidades básicas, você é mais do que essa coisa quantitativa, você é aquilo
que está presente no seu desejo, no seu sentimento e na sua alma.”
A gente vê pessoas, por exemplo, que não são capazes – por
uma série de motivos -  ou que nem pensam
nisso, em articular esse desejo, só falam assim: “ah, mas que coisa boa que tem
isso”.
Tem algo mais nos acenando – nos acenando de onde? Não é a
religião que inventou, não é a filosofia que inventou, está acenando de dentro
do nosso próprio ser. É um desejo profundo que nós experimentamos na nossa
orfandade original, e nós já nascemos órfãos de ter sentido na vida, de ter
significado e de ter perenidade. Não pode acabar. Esse é o desejo que nós
temos.
E isso tudo significa- a pessoa que tem essa experiência,
que tem esse desejo – nós dizemos que é uma pessoa que tem vida interior, vida
simbólica.
Nós podemos dissecar um corpo, abrir um cadáver e nós não
vamos achar onde está isso, mas essa pessoa viva nos diria desse desejo, desse
sentimento, capacidade de sofrer, de ter frustrações, dores profundas,
depressões indescritíveis e alegrias indescritíveis.
De onde vem isso, de onde nasce isso a não ser da própria
profundidade da nossa alma e de nosso sentimento?
Então, a arte nasce daí e produz a partir daí, o autor não
tem poder sobre sua obra nesse sentido, ela é dada e oferecida como um dom para
a alegria de toda comunidade humana.
Imagine nós sem isso!
Mas quando a gente procura a arte é tão maravilhoso, porque
sem saber e sem querer nós estamos procurando as coisas espirituais, aquilo que
não tem peso, nem tempo, nem medida…
Mas, que sem isso, a gente está regredindo à pura barbárie,
nós nos tornaríamos bárbaros.
A arte nesse sentido, ela consola, conforta, alegra e às
vezes com muito choro.
Há obras que nos deixam prostrados, às vezes falando sobre
nada.
Tem um poema que é impossível não falar, do Drummond que se
chama “Tarde de Maio”. É um dos poemas mais maravilhosos, pra mim, que ele
escreveu. É um poema longo, mas ele é constrangedor, tal é a beleza dele. Ele
fala sobre o Sol se escondendo no acaso, uma tarde luminosa de Maio, aquela luz
própria de Maio. É isso, ele fala sobre isso, sobre nada quase, e no entanto,
esse é o puro alimento do espírito, porque só o homem pode se comover com o Sol
que se esconde no horizonte, com a árvore florida, com as coisas mais mínimas,
mais cotidianas, que escondem em si mesmas a beleza – e é essa beleza que toda
arte procura. É tão forte que há pessoas que começam a olhar flores depois que
viram flores no poema.
Então, foi a força movedora e comovedora da arte – que faz
com que abramos os olhos para a maravilha da criação, a maravilha da
experiência humana que nos aguarda.

Qual o papel da obra de arte? Nenhum, ela é expressão pura.
Você encontra um pintor, por exemplo, desenhando e apagando
desenhando e apagando… Até se comprazer e falar “agora ficou bom”. Agora o quê?
Um ramo, uma fruta, um perfil… coisas que não valem absolutamente nada.
É dessa matéria imponderável sem valor quantitativo que é
feita a obra de arte.
Um quadro valer milhões é o mesmo que não valer nada, porque
não tem como medir a importância, a magnitude daquilo que está expresso numa
obra.
Então, os artistas – apesar de si mesmos – o que funciona é
a obra, ela estar dizendo ou não.
(...)
A fome de beleza é universal.
Nós não podemos achar que alguém não entenda isso, todos
entendem!
Há pessoas que têm vergonha de entrar na livraria; não é
porque não queiram, é vergonha.
Isso eu acho que é culpa do nosso sistema de educação que
não coloca o ensino da língua via literatura brasileira.
Nós precisamos da beleza, beleza não é luxo, é necessidade.
Quando Jesus estava comendo na casa do fariseu, Madalena
derramou bálsamo caríssimo nos pés de Cristo. Judas falou: “Que desperdício,
onde já se viu fazer uma coisa dessa, dinheiro que podia dar comida aos
pobres.” Cristo respondeu: “Pobres vocês sempre terão convosco, mas ela
(Madalena) está me ungindo para a sepultura”.
Nós precisamos disso!
A Arte não é econômica, ela é generosa.
É muito difícil a pessoa se dar conta de que todos nós,
artistas ou não, pobres ou ricos, só temos o cotidiano, o cotidiano de todo
mundo é absolutamente ordinário.
A cada um de nós, cabe a vida comum, o cotidiano. E eu tenho
a absoluta convicção de que é atrás e é através do cotidiano que se revela a
metafísica.
A beleza, está na criação, já está na nossa vida.
Drummond tem um poema que, por outras vias ele fala assim:
“Eu não sabia que a minha vida era mais bonita que a de Robinson Crusoé”. Essas
vidas ficaram encantadoras depois que passaram.
O mais bacana é a gente tirar o nosso heroísmo do nosso
cotidiano.

Só a morte é que dá um perfil para nós. Depois que a pessoa
morre, falamos: “coitado”.
Às vezes é heroico.
Pra mim, cotidiano é o grande tesouro!
Ortega y Gasset: “Admirar-se daquilo que é natural é que é o
bacana”.
A alma, criadora, criativa, sensível, um belo dia se admira
de algum ser como a água.
A vida é extraordinária.
Admirar-se de um Bezerro de duas cabeças qualquer débil
mental se admira. Admirar-se do que é natural, só quem está cheio do Espírito
Santo. É outro olhar.
O mundo é magnífico!
Todos nós queremos no nosso “currículo da vida” um ato
heroico; às vezes o ato mais heroico da nossa vida é o mais anônimo, é o mais
silencioso, que só Deus sabe. Isso que é a maravilha!
O cotidiano pra mim tem esse aspecto de maravilha, de
tesouro.

“Há mulheres que dizem: meu marido se quiser pescar pesque,
mas que limpe os peixes. Eu não, qualquer hora da noite me levanto, ajudo a
descamar, abrir, retalhar, dessalgar. É tão bom a gente sozinhos na cozinha. De
vez em quando os cotovelos esbarram e ele diz coisas como: esse foi difícil,
dando rabanadas e faz o gesto com a mão. O silêncio de quando nos vimos a
primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo, por fim os peixes na
travessa, vamos dormir. Coisas prateadas espocam, somos noivo e noiva."
Não tem coisa mais ordinária do que limpar peixe, mas é um
ato humano, o que é humano já está combinado que é maravilhoso.

"Louvado sejas Deus meu Senhor porque o meu coração
está cortado a lâmina, mas sorrio no espelho ao que à revelia de tudo se
promete, porque sou desgraçado como um homem tangido para a forca, mas me
lembro de uma noite na roça, o luar nos legumes e um grilo, minha sombra na
parede. Louvado sejas porque eu quero pecar 
contra o afinal sítio aprazível dos mortos, violar as tumbas com o
arranhão das unhas, mas vejo tua cabeça pendida e escuto o galo cantar três
vezes em meu socorro. Louvado sejas porque a vida é horrível, porque mais é o
tempo que eu passo recolhendo os despojos. Velho é o fim da guerra como
macabra, mas limpo os olhos, do muco do meu nariz, por um canteiro de grama.
Louvado sejas porque eu quero morrer, mas tenho medo e insisto em esperar o
prometido. Uma vez quando eu era menina quando abri a porta de noite, a horta
estava branca de luar e acreditei sem nenhum sofrimento, louvado sejas.”

Mas agora uma boa notícia, no céu, os militantes, os
padecentes, os triunfantes seremos só amantes.



Muito obrigada! 





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